domingo, 11 de fevereiro de 2018

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                           Espinosa: a problemática da Substância
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 1. -  A especificidade de uma posição e o seu contexto sócio-cultural.
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   Não acreditando numa interpretação mecanicista em que o homem, mais ou menos passivamente, acaba refletindo o meio circundante, inclino-me antes para uma relação dialógica homem-meio, onde, contudo, este poderá ter um papel importante. Assim, podemos ver, no tempo da formação intelectual de Espinosa, uma Holanda como um país buliçoso, onde o comércio e a liberdade caminhavam lado a lado, liberdade essa não só civil mas também religiosa. A tolerância religiosa ali praticada valia mesmo ao país o privilégio de se tornar em refúgio de adeptos das mais diversificadas crenças religiosas. Encruzilhada de tradições que o comércio rapidamente divulgava, porto de abrigo da heterodoxia religiosas, a liberdade deste estado encontra, se me é permitido dizer, no espinosismo a sua correspondente consciência filosófica.
   Sem entrar nas influências do cartesianismo no pensamento de Espinosa, assunto de que falarei mais à frente dada a sua importância, quero apenas focar aqui as diversas influências na formação intelectual de Espinosa: a) a Teologia tradicional; b) a Ciência da Natureza (ambas as vertentes fundir-se-ão no conceito de Substância); c) Uma componente neoplatónica (exº: o conceito de Deus como Causa Única, direta e necessária de tudo o que existe); d) Alguns filósofos da Renascença como Giordano Bruno (exº: anulação da distinção entre Natureza e Deus). Note-se, no entanto, que esta última temática não nasce com Giordano Bruno (Cf. La Philosophie de La Renaissance de Ernest Bloch. Paris: Petit Bib. Payot, p 37: "A noção de natura naturans foi-lhe fornecida pelos filósofos árabes da Idade Média"). Por tudo isto, se a filosofia de Espinosa não pode ser entendida fora de um contexto sócio-religioso, também o não pode se a libertarmos das preocupações teóricas que a precederam e a que está indelevelmente ligada.
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2.- Cartesianismo e Espinosismo
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   Se o problema para Descartes era acima de tudo o problema da verdade em ciência e as exposições filosóficas tinham um mero papel coadjuvante, em Espinosa o que importava era a saúde da alma , a liberdade verdadeira e a beatitude. Assim, a uma preocupação pela ciência contrapõe-se uma busca de cariz religioso, ético e político.
   A tese corrente nesta questão visa enquadrar o espinosismo no prolongamento lógico do cartesianismo, mas mais do que uma continuidade e subordinação a uma filosofia anterior, aquele aparece-nos antes como um conjunto de intuições primitivas com validade interna específica, que vai buscar ao cartesianismo "a conceção de uma verdade objetiva pura" (Cf Le Spinozisme de Victor Delbos, p 213). Uma validação clara e distinta de cariz cartesiano acaba por abolir as formas puramente imaginativas das crenças judaicas e as expressões irracionais do neoplatonismo teológico. Mas poder-se-á unicamente falar de continuidade na medida em que Descartes falando de Deus como uma Substância Infinita o coloca à parte das outras duas substâncias: a res extensa e a res cogitans, deixando contudo por resolver a articulação entre estas duas formas de substancialidade. A partir do momento em que Espinosa priva "as duas realidades da Natureza Naturante de propriedade ontológica de substâncias, para lhes conferir a de atributos" (Cf. Joaquim de Carvalho, in "Prefácio à Parte I da Ética de Espinosa", p 46) acedemos a um monismo substancialista que se pode traduzir por: Substância igual a Deus igual a Natureza.
   Mas, embora através da forma expositiva da Ética, possamos pensar que Espinosa parte da Substância para uma posterior identificação com Deus, a mais recente investigação inverte o vector desta temática, e a concepção de Natureza bem como a de Deus surge, pois, como a intuição primeira e fundamental. Assim, poderemos concluir dizendo que a característica fundamental da Substância espinosana " é a coincidência e a identidade da Natureza com Deus) (In "História da Filosofia Vol VI" de Nicola Abbagnano. Lisboa: Ed. Presença, p 208).
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3 - O Deus de Espinosa
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   3.1 - A Natureza Naturante: os atributos

...Sem entrar nas questões relacionadas com a forma e o método da Ética de Espinosa, que fogem um pouco ao âmbito deste texto, centremo-nos nas temáticas que nos parecem fundamentais, e, segundo uma ordem aqui estabelecida, entremos na problemática dos atributos, para posteriormente se poder falar - comparativamente - das propriedades da Substância. O que são, pois, os atributos?
   Encontramos nas primeiras formulações de Espinosa explicações como esta: " Mas de extensão que é uma substância, não se pode dizer que tenha partes..." (Cf. Court Traité, p 55), é exatamente isto que permite a Delbos (Cf. Victor Delbos, op. cit. p 43) falar de uma certa indiferenciação na génese destes conceitos. Mas, refinada toda uma concetualização, esta aparece já na Ética com uma certa consistência - os atributos passam a exprimir funções da Substância na produtividade dos modos, ou seja, na factualidade do Universo:

Proposição XIV: "Afora Deus não pode ser dada nem ser concebida nenhuma outra Substância."
Corolário I: Deus é único (...) na Natureza só existe uma Substância (...) Infinita.
Corolário II: A coisa extensa e a coisa pensante são (...) atributos de Deus...

Ou ainda:

Definição IV: "Por atributo entendo o que o intelecto percebe da Substância como constituindo a essência dela".

   Vincada esta evolução concetual, adivinha-se qual a relação existente entre a Substância e os seus atributos. Espinosa admite uma infinitude a atributos (exº: Proposição XI - "Deus, ou por outras palavras, a Substância, que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente"), atributos esses dos quais só conseguimos perceber dois: Extensão e Pensamento, que produzem respetivamente os corpos e as ideias. Mas, qual é então a relação que se estabelece entre Extensão e Pensamento por um lado, e Deus por outro?:

a) aqueles não podem ser anteriores a este, porque se pudessem ser-lhe-íam ontologicamente superiores;
b) Deus não é também um composto, já que uma parte componente teria de ser finita, logo, os atributos não são componentes mas antes constituintes.

   Concluindo: Deus existe por si, constituído por substâncias que existem por si, mas que não têm existência separada daquilo que constituem. Deus e atributos são simultâneos e a unidade destes últimos não é em nenhum atributo englobante mas na substância que constituem. Enfatizemos ainda o facto da Extensão ter aqui uma certa especificidade, como já disse anteriormente ela não é constituída por partes, ideia que horrorizava Espinosa. E, voltando a Descartes que considerava uma Extensão divisível, Espinosa opõe-lhe energicamente uma Extensão em si mesma infinita, e que, portanto, não poderia ser constituída por partes finitas, sendo, por conseguinte, indivisível.
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   3.2 - Atributos e Propriedades
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   Campare-se agora o que se viu acerca dos atributos com o que se entende por propriedades da Substância. Foi propositadamente que utilizei acima as Proposições XI e XIV da Ética . As propriedades não são mais do que adjetivações incompreensíveis sem os respetivos substantivos, quero dizer, Deus sem elas não seria verdadeiramente Deus.
   Na estrutura do Tratado Breve temos o capítulo III onde Deus é analisado como causa de tudo; o cap. IV que fala da ação necessária de Deus; no Cap. V aparece a segunda propriedade (Cf. Op. Cit. p 71: " O segundo atributo a que chamamos propriedade é a Providência, a qual não é para nós mais que a tendência que nós encontramos em toda a natureza (...) à conservação do ser.") e no Cap. VI fala-se da terceira propriedade, a predestinação divina. Ora, esta posição não é alterada na Ética, mas antes aprofundada, assim, Gueroult (In "Spinoza - Dieu, Ethique I" p 243) enunciando as propriedades, leva-nos à seguinte esquematização:

Propriedades da essência de Deus:
Prop. XI - Causa Sui
Props. XII e XIII - indivisibilidade
Prop. XIV - unicidade e infinitude

Já a Proposição XV: "Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser concebido", tem a ver com o Panteísmo de que falaremos em breve, e ela opera, por assim dizer, a transição para um outro tipo de propriedades - as do poder de Deus, quer dizer, da Substância:

Proposição XVI - causa de todas as coisas
Prop. XVII - livre e toda poderosa
Prop. XVII - imanente
Props. XIX e XX - eterna
Corolário II da Proposição XX: "(...) Deus, ou, por outras palavras, todos os atributos de Deus, são imutáveis - imutabilidade.
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   3.3. - Natureza  Naturada: os modos
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   Tendo falado já de Deus-Causa ou Natureza Naturante, passo agora ao Deus-efeitos ou Natureza Naturada (Cf. Proposição XVI: " De necessidade da natureza divina devem resultar coisas infinitas em número infinito de modos, isto é, tudo o que pode cair sob um intelecto infinito."). Aquilo que se produz não é exterior a Deus, nem este é jamais causa afastada do produzido, dos modos, que, por sua vez, acabam introduzindo-se numa trilogia concetual: Substância, atributos e modos. E, quanto à diversidade desses mesmo modos, Espinosa já no "Tratado Breve dizia: "Quanto à Natureza Naturada, dividi-la-emos, em duas, uma universal e outra particular. A universal compõe-se de todos os modos que dependem imediatamente de Deus (...) A particular compõe-se de todas as coisas particulares que são causadas pelos modos universais" (Cf. Op. Cit. p 80). Esta formulação será depois aprofundada na Parte I da Ética, já que a parte universal da Natureza Naturada é subdividida em dois outros grupos:

A) Modos Infinitos - Imediatos: a.1.) Intelecto Infinito (Pensamento)
                                                 a.2.) Movimentos/ Repouso (Extensão)
                                Mediatos:  b)Face de todo o Universo (Ordem
                                                 total das almas eternas)

B) Modos Finitos ------------- Coisas particulares.


   Perante este quadro, a primeira exclamação que faço é a sua nítida influência neoplatónica. Vejam-se, por exemplo, os modos infinitos imediatos que servem, por assim dizer, de veios transmissores entre os modos seguintes e os atributos de Deus. Também em Plotino os seres intermédios eram necessários, e para o processo de emanação se dirigir do Uno à matéria (que em Plotino também não era um mal!) seriam precisas a Inteligência e a Alma (Cf. Op. Cit. p 80), igualmente as propriedades dos modos estão sujeitas a uma degradação conforme o grau hierárquico que ocupam, assim, a eternidade da coisa particular vêm-lhe não de si mesma, mas "ela só lhe pode ser atribuída sob uma forma derivada, enquanto é efeito necessário e incondicionado de uma causa existindo por si necessariamente, infinita e imutável" (In Martial Gueroult, Op. Cit. p 309).


©  Victor Oliveira Mateus ( Anos 70/ 80)
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