segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

ATENÇÃO!


   POR QUESTÕES QUE SE PRENDEM COM FALTA DE TEMPO, ESTE BLOGUE TERÁ, DURANTE ALGUMAS SEMANAS, UM RITMO DE POSTAGENS BASTANTE REDUZIDO, ASSIM, CONFIRMAMOS:
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- DIA 10 DE FEVEREIRO SERÁ A APRESENTAÇÃO DO Nº 2 DA CINTILAÇÕES. REVISTA DE POESIA E ENSAIO, CONFORME POST ABAIXO JÁ DEVIDAMENTE CORRIGIDO:

A) OS COLABORADORES DESTA PUBLICAÇÃO RECEBEM (COMO É HÁBITO), POR MAIL, O RESPETIVO CONVITE ELETRÓNICO;

B) A APRESENTAÇÃO DA REVISTA ESTARÁ A CARGO DO POETA E CRÍTICO LITERÁRIO:  ANTÓNIO CARLOS CORTEZ
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- NO DIA 24 DE FEVEREIRO (DATA QUE AGUARDA CONFIRMAÇÃO !!!!) PREVÊ-SE O LANÇAMENTO DO MEU LIVRO DAS ÁGUAS À DANÇA DAS FOLHAS (EDITORA LABIRINTO):
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A) ESTA OBRA SERÁ UMA RECOLHA DE ALGUMA DA POESIA POR MIM TRADUZIDA  NOS ÚLTIMOS ANOS PARA REVISTAS, ANTOLOGIAS, SITES, ETC. E ENGLOBA A PRODUÇÃO DE INÚMEROS POETAS COMPLETAMENTE DESCONHECIDOS EM PORTUGAL, ALIÁS, O TÍTULO É MESMO UM VERSO DO POETA CUBANO ERNESTO G.;
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B) ESTA APRESENTAÇÃO (COM DATA E LOCAL A CONFIRMAR) ESTARÁ A CARGO DA PROFª DRª MARIBEL MENDES SOBREIRA;
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- A MEADOS DESTE ANO SERÁ TAMBÉM PUBLICADO UM LIVRO MEU DE ORIGINAIS: AQUILO QUE NÃO TEM NOME (EDITORA COISAS DE LER).
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A T E N ÇÃ O:


A APRESENTAÇÃO DA CINTILAÇÕES REVISTA DE POESIA E ENSAIO

SERÁ NO PRÓXIMO DIA 10 DE FEVEREIRO (SÁBADO) E NÃO NO DIA 2

COMO ESTEVE ANUNCIADO NESTE BLOGUE.
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quinta-feira, 25 de janeiro de 2018



   A "Cintilações: Revista de Poesia e Ensaio, Nº 2, 2017/2018" ( Editora Labirinto) terá a sua apresentação ao público no próximo dia 10 de fevereiro (sábado), às 16:00H, na "Leituria" Rua Dona Estefânia, 123 A em Lisboa.
   Os autores que integram este projeto, bem como os colaboradores deste número da Revista, encontram-se referidos num post. abaixo.
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terça-feira, 23 de janeiro de 2018

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Maria Germana Tânger (16/1/1920-22/1/2018).

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   Ao que parece, a maquinaria dos nossos afetos é educável, até certo ponto, e boa parte daquilo a que chamamos "civilização" ocorre através da educação dessa maquinaria no ambiente da nossa infância, em casa, na escola e no ambiente cultural. Curiosamente, aquilo a que chamamos "temperamento" - o modo mais ou menos harmonioso como reagimos no dia a dia aos choques e aos obstáculos da vida - resulta desse longo processo de educação à medida que interage com os elementos básicos da reatividade emocional, aquela que recebemos em virtude dos fatores biológicos que atuaram durante o nosso desenvolvimento - o legado genético, vários fatores de desenvolvimento pré e pós-natal e a pura sorte, claro. Mas uma coisa é certa. A maquinaria dos afetos é responsável pela criação de respostas emotivas e, consequentemente, pela influência de comportamentos que, segundo poderíamos pensar, na nossa inocência, seriam unicamente controlados pelos componentes informados e discernentes da nossa mente. As pulsões, as motivações e as emoções têm, com frequência, algo a juntar ou a retirar às decisões que, na nossa imaginação, parecem ser puramente racionais.
(...)) Contudo, a maioria das pulsões, motivações e emoções são também sociais, em grande como em pequena escala, e o seu campo de ação vai muito além do indivíduo singular. O desejo e a paixão, o apego, o carinho e o cuidado, a ligação e o amor, funcionam num contexto social. O mesmo se aplica à maior parte dos casos de alegria e tristeza, medo, pânico e fúria; ou casos de compaixão, admiração e temor, inveja, ciúmes e desprezo. A poderosa socialidade, que foi um sustentáculo essencial do intelecto do Homo sapiens e tão indispensável na emergência das culturas, terá, porventura, tido origem na maquinaria das pulsões, motivações e emoções, onde evoluiu a partir de processos neurais mais simples, em criaturas também mais simples. Mas a verdadeira origem da socialidade remonta ainda mais atrás, ao exército de moléculas químicas, algumas das quais presentes em organismos unicelulares.
(...) Em conclusão, a maioria das imagens que nos entra na mente tem direito a uma resposta emotiva, seja ela forte ou fraca. A origem da imagem pouco importa. Qualquer processo sensorial pode servir de ativador, desde o paladar ao olfato e à visão, e não importa se a imagem está a ser criada no momento atual, ou se está a ser recuperada da memória. Pouco importa se a imagem pertence a objetos animados ou inanimados (...) Uma consequência previsível do processamento das muitas imagens que nos percorrem a mente é uma resposta emotiva, seguida pelo respetivo sentimento. Assim provocados, os sentimentos emocionais não têm exatamente que ver com a música da vida. O sentimentos emocionais têm que ver com canções ocasionais e, por vezes, com verdadeiras árias operáticas. As peças continuam a ser executadas pelos mesmos conjuntos, no mesmo salão - o corpo - e contra o mesmo pano de fundo - a vida. (...) A execução musical varia em cada momento pois a execução das respostas emotivas e a experiência do sentimento respetivo também variam, tal como acontece com a execução de uma peça musical famosa nas mãos de diferentes executantes. A composição a ser tocada, no entanto, continua a ser inconfundivelmente a mesma. As emoções humanas são peças reconhecíveis de um reportório normal.
   Uma parte substancial da glória e da tragédia humanas depende dos afetos, mesmo tendo em conta a sua modesta genealogia não-humana.
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  Damásio, António. A estranha ordem das coisas. Lisboa: Temas e Debates, 2017, pp 162-165.
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segunda-feira, 22 de janeiro de 2018


   A vida de um organismo é mais do que a soma total das vidas de cada uma das suas células. A vida geral do organismo, a sua vida global, por assim dizer, resulta da integração das vidas nele contidas. A vida do organismo transcende a vidas das células, serve-se delas e retribui o favor sustentando-as. É essa integração de "vidas" reais que faz com que um organismo esteja vivo exatamente no sentido em que uma rede informática complexa não está viva. A vida de um organismo implica que cada célula componente continua a ter de usar, e é capaz de usar, os seus componentes microscópios complexos para transformar em energia os nutrientes capturados no seu ambiente, fazendo-o segundo as regras da regulação homeostática e segundo o imperativo homeostático de preservar a vida apesar de todas as dificuldades e persistir. Mas a extraordinária complexidade de um organismo vivo, tal como o ser humano, só poderia ter surgido com a ajuda dos dispositivos de apoio, de coordenação e de controlo do sistema nervoso. Todos estes sistemas fazem parte integrante do corpo que servem. Também eles, como tudo o resto, são compostos por células vivas. Essas células também precisam de ser alimentadas regularmente para manterem a sua integridade, e, à semelhança de qualquer outra célula do corpo, também correm o risco de adoecer e morrer.
   A ordem do aparecimento dos órgãos, dos sistemas e das funções nos organismos vivos é crucial para se compreender como algumas dessas funções emergiram e começaram. Isso torna-se sobremaneira notório na necessidade de considerar as precedências das partes e das funções na história dos sistemas nervosos, sobretudo do sistema nervoso humano e dos seus magníficos produtos: mente e cultura. Há uma ordem para a emergência das coisas, que será ou não estranha, dependendo da perspectiva em que as consideramos.


  Damásio, António. A estranha ordem das coisas. Lisboa: Temas e Debates, 2017, pp 100-101.
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quinta-feira, 18 de janeiro de 2018


Está prevista, para meados de fevereiro, a saída da Cintilações: Revista de Poesia e Ensaio, Nº 2, 2017/2018. Esta publicação, com cerca de 200 páginas, terá a sua Apresentação em dia e local a anunciar.
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COORDENAÇÃO
Victor Oliveira Mateus
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CONSELHO EDITORIAL
Ana Cecilia Blum (Equador), António Carlos Cortez (Portugal), Daniel Gonçalves (Portugal), Hugo Pinto Santos (Portugal), José Ángel Garcia Caballero (Espanha), Leonor Castro (Portugal), Maria João Cabrita (Portugal), Maria João Cantinho (Portugal), Marta López Vilar (Espanha), Mbate Pedro (Moçambique), Mirna Queiroz (Brasil), Ricardo Gil Soeiro (Portugal), Risoleta Pinto Pedro (Portugal), Ronaldo Cagiano (Brasil), Stefania Di Leo (Itália), Victor Oliveira Mateus (Portugal).
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COLABORADORES DO PRESENTE NÚMERO
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poesia:
Adalberto Alves, Albano Martins, Alberto Bresciani, Alberto Pereira, Alfredo Pérez Alencart, Álvaro Mata Guillé, Amadeu Liberto Fraga, Ana Cecilia Blum, Ana Luísa Amaral, Ana Maria Puga, Anderson Braga Horta, André Domingues, António José Borges, António José Queirós, António Salvado, Artur Ferreira Coimbra, Cláudia Lucas Chéu, Cláudio Lima, Daniel Gonçalves, Everardo Norões, Gisela Ramos Rosa, Gonçalo Salvado, Henrique Levy, Inês Lourenço, Isabel Mendes Ferreira, Isabel Miguel, João Ricardo Lopes, João Rui de Sousa, José Ángel Garcia Caballero, José do Carmo Francisco, José Eduardo Degrazia, Josep M. Rodríguez, Leonor Castro, Licínia Quitério, Manuel Neto dos Santos, Maria Augusta Silva, Maria do Cebreiro, Maria José Quintela, Maria Toscano, Maurício Vieira, Myriam Jubilot de Carvalho, Pedro Lyra, Pedro Sánchez Sanz, Pompeu Martins, Ricardo Gil Soeiro, Rita Taborda Duarte, Rui Almeida, Sandra Lopes, Stefania Di Leo, Victor Oliveira Mateus.
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ensaio:
André Barata, César Freitas, Hugo Pinto Santos, Jaime García Mafla, José Cândido de Oliveira Martins, Maria João Cabrita, Nuno Brito, Pedro Marques Pinto, Rosa Alice Branco, Victor Oliveira Mateus.
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caderno:
Maria João Cantinho.
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crítica literária:
Hugo Pinto Santos.
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prosa;
António Ladeira, Luísa Venturini, Paulo Pego, Pedro Martins.
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sexta-feira, 12 de janeiro de 2018



     Hoje não me dá jeito morrer


Hoje não me dá jeito morrer. Hoje
tenho uma fantasia ao lume, do género
andar no parque de mão dada; e semeei
palavras graves, ando sempre à cata
dos rebentos. Hoje tenho de olhar
para uma pedra. E de definir dois pontos
cardeais a um pássaro. E de rebolar
numa encosta quando eu era pequena.
Hoje não tenho tempo para morrer, estou
a pensar aprender tango, inclinar-me
a trinta graus nos braços de um galã
com a perninha em tagatés àqueles
que me vêem. Hoje trinquei chocolate
e viajei, como se o chocolate me fizesse
estrelada e imortal, o horizonte chão
daquela trincadela impede obviamente
a morte neste dia. Hoje não dá jeito,
tenho de ir de viagem amanhã,
ou a daqui a um mês, para conhecer
os sonhos que andam aí e nunca poisam,
sempre guardados num grosso calendário.
Tenho da amar um gato, e uma pessoa, e um quadro
que me diz que há muitos outros, e uma árvore
com quem há vários anos tive um caso. Hoje
a Música apareceu-me com uma ponta de ironia
e perguntou: "É hoje?" E eu disse-lhe que sim,
porque não estou junto da morte.
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  Pires, Isabel Cristina. folhas - letras & outros ofícios 15. Aveiro: Grupo Poético de Aveiro, 2017, p 58.
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quinta-feira, 11 de janeiro de 2018


      As palavras e a máscara


Para que servem as palavras
que nunca cheguei a dizer?
As justificações?
Um cabriolar de motivos,
que, por mais autênticos e verdadeiros,
lerias como farsa
para um palanque que o tempo não poupou.
De que serve falar do não pensado
ou do pensado sem rigor nem previsões;
dessa loucura antiga
que a vida inteira puniu
como um resgate
do que em mim emenda nunca tivera
nem sequer diminuição?:
pagamento desmedido;
tormento por um gesto descuidado,
estouvamento;
máscara com que ainda hoje disfarço
aquilo que não tem nome.
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Mateus, Victor Oliveira. folhas - letras & outros ofícios 15. Aveiro: Grupo Poético de Aveiro, 2017, p 129.
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Dá-me a tua ausência.
Esse rigor absoluto
onde o silêncio se mistura
com a pacificação sem remédio
de nada querer.
Devolve-me esse espaço,
onde a imaginação desenhou
ilhas de possíveis
e, crédula, não vislumbrou
a lâmina acerada do tempo.
Concede-me,
num lampejo puro e definitivo,
a vasta plenitude do vazio,
esse vazio em que tudo
se acabará transformando,
tudo, mesmo as imagens
que um dia suspeitámos
demasiado certeiras e coloridas.


   Mateus, Victor Oliveira. folhas - letras & outros ofícios 15. Aveiro: Grupo Poético de Aveiro, 2017, p 128.
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quarta-feira, 10 de janeiro de 2018



Este amor es una distancia y su escala.
Es un dolor apuntalado en su angustia y su frío sano.
Este amor sin peinar,
con afonía y destreza contenida,
este almanaque de temblores y profundos.

Este es un amor a medio sudar,
una constelación acunada,
una piedra blanda en el bosque
y todo el sentido de la palabra cobijo.

Es un idioma sin quebranto,
este amor no es otra cosa que la sed de plenitud
y todos los miedos colgados al fresco.

Este amor nos concierne.
Nos define con luminaria limpieza,
sin brillos silábicos ni flora impermeable.
Nos mece en sus hielos y sus abrigos,
nos alimenta inevitablemente,
nos corresponde a pesar de nuestros desmanes.

Este amor está tan hecho de sí
que es difícil sabernos fuera de su excepción.
Este amor sin apellidos,
sin escoba para la derrama...
Este amor.


  Saravia, Rafael. El abrazo contrario. Madrid: Bartleby Editores, 2017, p 51 (Frontispicio de Antonio Gamoneda).
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Cuento la historia sin creerme el final dictado.
Ni las cazuelas se llenaron
siempre que la voz se alza pidiendo equidad,
ni el nombre avanza con más celeridad hacia la Tercera
que cuando se pronuncia involucrado de lluvia.

Las plazas siguen teniendo fugas;
ellas se aprietan las convocatorias en fechas señaladas
y ansían el amor libre fuera de domingos comerciales.

Los contenedores jamás han vivido una paz tan duradera
en época de hambre y disimulo.

No obstante, la especie evoluciona.
Se sabe esclava de su condición,
                                      y eso ya es mucho saber.

En el siglo XXI,
apenas un par de décadas después de su inicio
la vocación de libertad está demodé.
Dos asalariados valen una paga,
un funcionario sacia el doble de amargor
por menos de un sobre de sacarina.

La Seguridad Social es ese lugar donde duele la vida privada
y los enfermos son más subjetivos que en los espacios de Topor.

La justicia es un producto por encima de nuestras posibilidades.

No hay arcén para la disidencia,
no hay alternativa para el que piensa que vivir
es un derecho y no una subvención.

Cuento la historia sin intención de creer.
Los bocados de argumento están naciendo ahora.

La esperanza viene de hoy.


  Saravia. Rafael. El abrazo contrario. Madrid: Bartleby Editores, 2017, pp 32-33 (Frontispicio de Antonio Gamoneda).
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terça-feira, 9 de janeiro de 2018



            23. DO FINAL

Sou o homem das alamedas,
que anda devagar coberto pelas árvores
com a memória arrancada da cabeça.
Não me bastam as velas das igrejas
para clarear o instante destas horas
no meu relógio de pulso parado.
Rua imensa para preencher o silêncio
costurado no corpo do meu final.
A poesia é a asfixia
que me faz morrer aos poucos.
Corre este rio sobre meus pés cortados
por folhas amarelas.
Tenho uma igreja fechada dentro de mim
com altares desertos.
Percorro os corredores dos campos
como se a colher trigo
vigiado por aves tristes.
O poema se perde
como a vida que se vai aos pedaços
no antigo vaso ausente da sala.
Não estou comigo
nem permaneço com minha alma.
Leve é o nada
em que desapareço
e dou tudo por perdido.
As palavras mortas me habitam a boca
com sílabas que sangram.
O guarda-chuva vazio
me cobre inteiro,
mas ainda vejo o que me cerca.
Perdi meu chapéu
com pensamentos inúteis.
Agora só quero
me esconder do que resta de mim.


  Faria, Álvaro Alves. 23 elegias da mão esquerda. Coimbra: Palimage, 2017, pp 34-35.
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segunda-feira, 8 de janeiro de 2018



abrazado al mutismo,
con la llovizna en mi rostro,
de regreso a casa correteando por las aceras,
debajo de la lluvia,
metiéndome en los charcos,
reaparecían las sensaciones que dese niño me embargaban

;

me detenía en los torrentes venidos de los techos,
cayendo de las canoas derruidas,
yéndome con al agua,
abandonando por un momento las dudas,
la ajenidad,
el silencio,

escapando sin escapar de aquel lugar sin nombre,
del lugar sin lugar asomado en el valle,
mas allá de la bruma,
de mi extrañeza

;

 Guillé, Álvaro Mata. Más Allá de la Bruma. Ciudad de México: Casa Editorial Abismos, 2017, p 15.
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Estou na densidade
de um verbo solitário
no horizonte de uma língua
incompleta

desenho linhas sem gravidade
transgressões da linguagem
que me conduzem ao branco
palco da palavra onde te encontro

eclodes como um navio solar
por entre a aura de um aceno
como se os teus punhos
derramassem a líquida seiva
de um arbusto

e neste corpo balanço a água
de um mar antigo
adio o fogo
flutuando na superfície
de uma pele tranquila


   Rosa, Gisela Gracias Ramos. O Livro das Mãos. S/c.: Coisas de Ler, 2017, p 34.
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domingo, 7 de janeiro de 2018



A Victor Oliveira Mateus


Passemos erguidos com a vénia do coração
perante quem a cicuta produz efeitos
que desenham o rosto de quem
a verteu e ofereceu com a língua informe.
E àqueles cujo olhar não mais diz que
a ávida esperança da escuta a esses
depositemos a oração do poema
com as palavras mais simples


 Rosa, Gisela Gracias Ramos. O Livro das Mãos. S/c.: Coisas de Ler, 2017, p 52
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Houve um tempo em que as aves
não estavam embaciadas.

As asas não tiveram
a sorte de Ulisses
e Ítaca
é a melodia do pranto.

Ficámos sós,
a matar as teclas,
com o piano pendurado nos olhos.


  Pereira, Alberto. Viagem à demência dos pássaros. Lisboa: Glaciar, 2017, p 57.
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sábado, 6 de janeiro de 2018



Sabes, meu amor,
adoro os pássaros que voam
quando as árvores já não são suas.
A biografia do coração
raramente esquece a queda das folhas.

E o que é o voo para lá do Outono?

Não me digam para guardar
o vento na garganta
ou que as tempestades
são retratos de um hospício.
O teu corpo ensinou-me,
o Verão é um felino
e a hierarquia das garras
só o tempo a sabe.
É certo, as nódoas têm sinos,
mas no pináculo do perfume
ninguém observa versos rotos.

Ainda te quis quando a pólvora
tocava os últimos acordes nos ramos.
Não tinha aprendido,
aparar as unhas à neve
serve para pintar biombos nos olhos.
Se tivesse ouvido Dostoiévski ou Gógol
e bebido as sombras de São Petersburgo,
sabia,
o ouro das catedrais
assimila a mágoa da cidade.

Sabes, meu amor,
a eternidade procura sempre uma corda no céu.


  Pereira, Alberto. Viagem à demência dos pássaros. Lisboa: Glaciar, 2017, pp 25-26.
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sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

 Com Detergente, obra que tem como epígrafes um verso de Cesário Verde e outro de Ruy Belo, Ruy Ventura instala-se deliberadamente numa zona de interseção dos géneros literários: estamos perante uma dramaturgia onde duas personagens vão dialogando? Perante dois monólogos justapostos onde duas vozes poéticas se fazem ouvir, embora tangenciando-se aqui e ali? Ou estamos perante um livro de poesia onde o dialógico ocorre em socorro de uma mensagem de cariz transcendentalista e de uma acentuada função poética.  Pessoalmente, inclino-me para a última interpretação, daí ter lido (com muito agrado) esta obra à luz da poética de alguns dos grandes dramaturgos franceses da primeira metade do século passado, como por exemplo Paul Claudel e Henry de Montherlant, bem como da lucidez desesperada de um Pierre Drieu la Rochelle.
A obra inicia-se com duas personagens (figuras? Vozes poéticas?) que se fazem ouvir junto a um edifício em construção (a simbólica do livro é algo a considerar!), enquanto ao fundo se ouve o Quatuor pour la Fin du Temps de Olivier Messiaen. Também não é acidental a escolha da música de Messiaen: um dos maiores compositores do século XX, compositor esse cuja profunda religiosidade atravessou toda a sua vida e toda a sua obra. Eis um excerto do livro:
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Raul:
(...) Há quem vença a tempestade e descubra na ausência da imagem um motor. Há quem veja na luz intensa do farol uma resposta e, na resposta, um íman que leva à construção de um abrigo e ao confronto com as marcas da itinerância e da subida. Temo contudo o vazio que resulta da remoção do entulho. Não dispenso o domicílio quando dispo o território e a lembrança. Preciso de mirantes e de labirintos, mas recuso ver e, sobretudo, perder-me.
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João:
Dias virão em que os passos serão pagos: não poderemos atravessar se não pusermos os joelhos em terra e venerarmos o espírito sem acento, essa inversão do fogo e da ventura. Dias virão em que os olhos pagarão tributo para fitarem o céu e o oceano. Dias virão em que a entrada na serra e nos seus limites obrigará ao pagamento da portagem. (...) Há quem escreva versos, mas dispense a escassez, o trabalho, a descoberta. Há quem vá filosofando, mas rejeite o amor e a sabedoria. Há quem pinte, molde, filme, dance e represente, mas feche os olhos às imagens que nos desafiam, como lava no dia do juízo. Há quem escolha (e esconda) de dois senhores o mais rendoso - e assim afunde (e se afunde) num terreno movediço todos os corpos e, com eles, a alegria, a dor e a graça, transformando-nos em fósseis liquefeitos, em crude que um dia arderá nessa fogueira onde os autos-sem-fé do nosso tempo vão colocando a voz e a incerteza.
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Raul:
Temos de sorrir (dizem). Temos de suportar, ainda que a dissolução nos transforme em vermes, em roedores que voam ou rastejam, corroendo as estradas com excrementos. Somos vítimas ou agentes do veneno? Prefiro não dizer. Prefiro não fazer Se o fizesse ou dissesse, cortaria a minha mão ou a minha língua (...) Desvio os olhos do risco. Descubro o engano e a cobardia. (...) No entulho hei-de encontrar o braço (detergente) - e nesse lume sobreviverei.
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  Ventura, Ruy. Detergente. S/c.: Editora Licorne, 2016, pp 16-17.
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quinta-feira, 4 de janeiro de 2018



                           Isto  


Isto que escapa entre dois pensamentos
às vezes parece fugir e às vezes
parece apenas voltar (sem regresso)
à sua pátria, qualquer seja ela.

Isto que às vezes era quase um nome,
não fosse inédita a falta que deixa
(não fosse escuro imaginar dizê-lo),
parece às vezes ter vontade ou sexo.

Ou talvez tudo seja apenas o hábito
de supor coisas onde coisa alguma,
ou nada exista senão intervalos:

o corpo apenas um (entre dois nadas),
o mar aquele que entre duas praias,
e a água um intervalo da espuma.


Neves, Cláudio. ouvido no café da livraria. São Paulo: Editora Filocalia, 2016, p 91.
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quarta-feira, 3 de janeiro de 2018



        Somewhere in time


Não é que fosse uma paixão antiga:
ficou paixão só quando nos revimos
depois de o quê, senão bem perto disso,
ficou paixão e aí ficou antiga:
sabe, essas coisas ficam décadas, ainda
que nunca nem tenham de fato sido:
me perdoe se sou ou pareço prolixo:
nem sei se dói, mas uma coisa eu digo.


  Neves, Cláudio. ouvido no café da livraria. São Paulo: Editora Filocalia, 2016, p 39.
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         O Funeral de Heféstion


O inanimado nunca gerou tanto
Movimento, o deitado tanta altura.
Velas de púrpura, proas de pranto,
Navegam o ar, ao vento da loucura.
        A escassa coisa, um homem,
        E as línguas que o consomem
Fremem por se enlaçar na borra escura.

Símbolo é tudo, fantasmagoria
Quanto a luz forja e a mão ao céu levanta.
Sobre troféus, panóplias e armaria
Em cada canto uma sereia canta
        Pela voz de algum vulto,
        Reles bípede oculto
No templo tênue que no azul se implanta.

Urge enganá-lo, o hirsuto horror que assombra
Cada conviva do avesso e do inverso,
Rever o antes do ser, vestir a sombra,
Ser o logro e a graçola do universo.
        Que a ebriez da honra e do hoje
        Cubra a escória que foge
Ao som do rio primevo e preverso.

Quarenta homens de alto, arcos, quimeras,
Colunatas pintadas de ocre e ouro,
Hidras, centauros, grifos e outras feras
E o mais que pague o pérsico tesouro,
        Bandeiras tatalantes
        E as almas inebriantes
Da mirra, do aloés, do vinho e o louro.

E queima! Igual a nós. Maior que a pira
É o caos que nos erige, o amontoamento
Do que um homem não é e em que que se mira,
Portões de areia que abre e arrasa o vento.
        Maior, e um só segundo
        Cancela-o. Arde um mundo
Sob o sol a cada ínfimo momento.

Como aqui, nesta noite. Amor o ordena
E o fogo o cumpre. A cínica pilhéria
De ser ou de vencer, a inútil cena
Da vida esfaz-se em turva nódoa aérea.
       Há um urro e um coro. Após,
       Nem os menores pós
Restarão da nossa híbrida miséria.


   Bueno, Alexei. Desaparições, Antologia organizada e prefaciada por Arnaldo Saraiva. Porto: Editora Exclamação, 2017, pp 110-111.
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terça-feira, 2 de janeiro de 2018



          Ítaca


Quer tremam os céus
Que me auguram morte
Ou se esforça o deus
Da úmida cratera
Contra a minha sorte,
Ítaca me espera.

Cheire-me o gigante
Na inviolável furna,
Beba o mar bramante
A última galera
Na exaustão noturna,
Ítaca me espera.

Puxem-me as sereias
Com sonoros laços,
Prenda-me em suas teias
Aquela que impera
Nos mortais cansaços,
Ítaca me espera.

Lance-me bruxedos
A odiosa maga,
Mordam-me os rochedos
De dentes de fera
Onde o mar nos traga,
Ítaca me espera.

E lá longe brindem
Minha hora funesta,
Mesa e adega findem
Da mansão severa
Para a hedionda festa,
Ítaca me espera.

E então durmam tortos
De risos e vinhos,
Vivos quase mortos,
Neles meu ser gera
A ânsia dos caminhos.
Ítaca me espera!


  Bueno, Alexei. Desaparições (Antologia organizada e prefaciada por Arnaldo Saraiva). Porto: Editora Exclamação, 2017, 78-79.
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