sábado, 16 de dezembro de 2017


Crónica publicada hoje  na Plataforma "Escritores.online". Ver aqui  https://escritores.online/textuario/cegos-sao-os-outros-victor-oliveira-mateus/  
Foto: Leitura no Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca em 2017/10/25.
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                                        Cegos são os outros
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     Ao sair do café, de manhã, logo após o pequeno-almoço, deparei-me com duas mulheres, saídas nem eu sei de onde, que me barravam o caminho. Uma delas, vestida de negro, estendeu-me um livro de capa acastanhada. Se eu queria ouvir a verdade, perguntou-me. Eu, ainda ensonado e com pouca paciência, resolvi gracejar: Isso está mal traduzido! A mulher de negro perdeu a compostura, vociferou, saltitou à minha frente. Eu, que me tinha jurado jamais argumentar em questiúnculas ou conciliábulos deste tipo, resolvi recuar. Contudo, a mulher de negro não desarmou: falou-me do eminente fim do mundo, folheou o livro, defendeu a indiscutibilidade do escrito. Os seus olhos chispavam, o corpo aos estremeções parecia barco em vendaval tremendo. E foi então que resolvi dar um cunho mais sério à abordagem: falei-lhe das interpretações das Escolas de Alexandria e de Antioquia, das questões surgidas em torno das Epístolas de Paulo, etc. A mulher de negro foi ao rubro: Quem devia estar aqui era um ancião!, gritava ela. Um ancião é que havia de lhe responder.
     Quando me preparava para as contornar e cortar cerce a conversa, senti uma mão pousando levemente num dos meus braços. Olhei. Era a outra mulher, igualmente idosa, mas esta agora toda vestida em tons claros, uma cabeleira curta e toda ela branca a condizer. Olhei-a. Tinha uns olhos de um azul tão líquido que me fez lembrar os de meu pai já nos seus momentos de assumida loucura. Olhos parados, virados para a porta do Banco. Ó meu senhor, perguntou-me ela, então pensa que andamos neste mundo para nada? Apanhado de surpresa, estrebuchei, entrechocaram-se-me os raciocínios, desabou-me a bravata, que, ainda conseguiu dizer: Não, por acaso até não! A mulher de claro, fazendo subir a mão, tocou-me os ombros, o rosto, os óculos e sussurrou: Então já vê! Ficámos os três num silêncio breve.
     A mulher de claro, serena, obliquava com frequência a cabeça, enquanto a de escuro, com a respiração rápida dos ansiosos, invetivava tudo e mais alguma coisa, até que decidiu, por fim, confessar o milagre que lhe tinha acontecido. Resolvi acabar com a cena: Ó minha senhora, já vivi o suficiente para saber que há mais milagres do que aquilo que julgamos ver! A mulher de escuro atrapalhou-se: não percebia em que sentido eu usava o termo milagre, procurou avidamente auxílio na outra, que, silenciosa, continuava obliquando a cabeça como pêndulo bem afinado. Em desespero, a mulher de escuro jorrou em cascata: as suas duas operações ao coração, as feridas – e arregaçou ligeiramente as mangas para mas mostrar – , a tensão, os desmaios etc. Foi aqui que lhe perguntei o nome do cardiologista que a acompanhava. Mas o senhor pensa que eu com 300Euros por mês de reforma, tenho dinheiro para andar sempre em especialistas? Percebi então que a conversa adquiria novo rumo, rumo esse no qual eu não costumava ter hipótese: tirei da mochila um papel e comecei a escrever… A mulher de escuro, sem perceber o que eu estava a fazer, olhava-me fixamente. Voltei a guardar a esferográfica na mochila e entreguei-lhe o papel: A senhora vá aqui a esta Clínica, está aqui o nome de um cardiologista, eu já percebi que a senhora está mal medicada, olhe, é naquela rua lá ao fundo, vá lá, que eles fazem-lhe os exames que forem necessários. E apontei para uma rua ao longe. A mulher de escuro insistia na questão do dinheiro e eu tive de a sossegar: Escute, a Clínica é de amigos meus, está muito bem apetrechada, faça mas é o favor de lá ir, ninguém lhe irá pedir dinheiro, eu já telefono para lá. A mulher de claro voltou a pousar a mão no meu braço, levou-a de novo até ao meu ombro, manteve-a aí, com uma ligeira pressão e disse: Ah, eu sabia… afinal o senhor é um homem bom! Não consegui conter uma gargalhada: Eu? Um homem bom?! Só essa é que me faria rir agora, a senhora não imagina a quantidade de pessoas que eu lhe poderia apresentar e que lhe diriam exatamente o contrário. Ela fez descer a mão até ao meu pulso, que agarrou com firmeza e, sorrindo, já sem obliquar a cabeça, murmurou: Pois é, mas esses que diz, veem com os olhos, enquanto eu vejo com o corpo todo! E foi aqui que resolvi olhá-la com mais cuidado, olhar a sua serenidade, a sua argúcia, a sua capacidade de silêncio, olhei e conclui que aquela que de nós melhor via, afinal, era cega.
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