quarta-feira, 20 de dezembro de 2017


CAPÍTULO 18
Fósforos no escuro:
Sobre Negro Marfim, de Victor Oliveira Mateus


                   The great revelation had never come. The great revelation perhaps
                   never did come. Instead there were little daily miracles, illuminations,
                   matches struck unexpectedly in the dark.

                         Viriginia Woolf, To the Lighthouse (1982:249).
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   Seria de forma tacteante e de coração aberto que nos deveríamos aproximar, sem vergonha ou embaraço, do novo trabalho poético de Victor Oliveira Mateus. Uma obra que, pela densidade imagética a que se propõe e pela intensidade das meditações que desenha, desafia qualquer infrutífera tentativa de paráfrase. É essa a marca-de-água da grande poesia. Versos que, dizendo aquilo que têm para dizer, não carecem verdadeiramente do véu crítico que sobre eles, em vão, sempre nos atrevemos a lançar. E, assim, quase paradoxalmente, como que impera uma cintilante transparência, irrompendo do seio de uma escuridão avassaladora que permeia a tessitura deste Negro Marfim.
   A voz poética que percorre estas páginas aceita o rumo que Goethe traçou para o aprendiz de enigmas que todo o poeta é - "Faz da tua dor um canto", intima o autor de Poesia e Verdade. Em textos que combinam magistralmente um contido fôlego narrativo e a pregnância da expressividade metafórica, desfila perante o leitor um elenco de actores, que albergam uma prismática multiplicidade de olhares, intérpretes-fingidores que vão desempenhando os seus papéis, (...)
   Victor Oliveira Mateus põe em cena uma espécie de tragédia absoluta das nossas vidas, cabendo ao poeta o papel de precária testemunha de um tempo sem aura, de um alegre apocalipse (como lhe chamou Hermann Broch) em que, inapelavelmente, nos vamos afundando. (...)
   Em Negro Marfim, naufrágio com espectador também se lhe poderia chamar (para utilizar o título de um livro de Hans Blumenberg), o sujeito agónico assume a incumbência ética de captar fugazes instantâneos de múltiplas vivências, testemunhando um mundo em convulsão, uma espécie de estéril e exaurida Waste land (...). Poética, pois, da constatação da perda, tangenciando a problemática do desconcerto do mundo, de camoniano tradição (...).
   Estamos, pois, perante uma poesia indagativa que se demora nesse tactear dos escombros, vasculhando as ruínas, em demanda daquilo a que Benjamin chamou a frágil força messiânica a que o passado tem direito. Seria, porventura, frutuoso ensaiar uma análise cuidada do livro em apreço à luz das considerações benjaminianas em torno da estética da ruína e da noção de melancolia. (...) É como se, como nos diz Benjamin, no seu persistente alheamento meditativo, a melancolia absorvesse na contemplação as coisas mortas para as poder salvar.
(...) A tragédia, a escuridão, tem sempre a mão estendida às estrelas; nela habita uma semente de esperança, uma espécie de rasto de luz que, recusando extinguir-se, brilha como uma pérola negra que, embora negra, é ainda pérola. Como do fundo do inferno saiu Dante para voltar a ver as estrelas ( e quindi uscimmo a tiveder le stelle), (...)
   Trata-se de uma poesia dilacerada e dilacerante. Em Negro Marfim, Victor Oliveira Mateus pinta, efectivamente, um grito perante um universo que se desmorona (...) é o canto que emerge depois da harmonia, após a barbárie medrante no seio de um mundo despido de ética e amputado de beleza. (...)
   Trata-se de um olhar disfórico e intransigente e nisso se aproxima de um escritor como Rui Nunes: "o negro é a intimidade/ de todas as cores, no Outono de um passeio no reno/:/ O negro é o estrume do luto," lemos em Uma Viagem no Outono (Nunes, 2013:33). Leio Negro Marfim como um inadiável apelo contra o servilismo e o esquecimento, contra o empobrecimento da imaginação e o aviltamento da beleza, contra o padronizante e estupidificador poder económico (...) e a cinzenta era da 'burrocracia' - para utilizar o magistral e justo neologismo de Herberto Helder.
(...) O sujeito poético ora espia, ora é espiado, numa intrincada teia de olhares que confunde presa e caçador, voyeur e objecto de desejo.(...) esses súbitos e delicados sobressaltos como que redimem, sendo, no dizer de Virginia Woolf, "iluminações, fósforos que se acendem inesperadamente no escuro", e que dão voz a uma palavra intermitente, tão precária e gloriosa como a vida.


  Soeiro, Ricardo Gil. Poéticas da incompletude. V. N. Famalicão: Edições Húmus, 2017, pp 157-164.
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