sábado, 21 de outubro de 2017



Apresentação do livro Viagem à Demência dos Pássaros de Alberto Pereira


Creio justificar-se, como preâmbulo a esta Apresentação, um poema de uma das grandes poetas que escreveu em português na segunda metade do século XX: Dora Ferreira da Silva.


                                                O PÁSSARO

                                      Tênue
                                      toca a terra dura
e ascende.
No céu expande o canto
ferindo as cordas do infinito.
Nas folhas acorda um timbre
delicado.
Mas conhece a ferocidade.
Na fome se precipita
destroçando com o bico
vermes
que a terra expulsa
sem piedade.

Sua morada é o canto
mais do que ninhos
ou a voracidade.
E sobe para um dia cair
sem ressentimento.



Este poema de Menina seu mundo (1976), depois reeditado em Poesia Reunida. Rio de Janeiro: Topbooks 1999, pp 121-122, e que precede em quase duas décadas o mais importante ciclo poemático de Dora dedicado a aves, o Garças, publicado em Poemas da estrangeira (1995), ilustra os três nós temáticos do presente livro de Alberto Pereira: a viagem, os pássaros e o demencial. Vemos, portanto, e numa primeira abordagem, que o presente livro recusa uma linearidade discursiva centrada no prontamente dado aos sentidos, nas vivências ritualizadas do quotidiano e nas inquietações específicas de um mundo urbano ensimesmando-se numa auto-imagem grandiosa. À opção, mais ou menos circunstancial, pela urbe e pelo imediatamente experienciado, Alberto Pereira contrapõe uma tessitura metafórica articulada, onde a presença dos diversos leitemotive (o tempo, a casa, os retratos, as árvores, os livros, o piano, etc.) nos fazem lembrar os grandes rasgos poemáticos dos séculos XIX e XX (Cf. Wagner in Tristan und Isolde. Paris: Aubier, 1974, p 243: o desejo, o olhar, o mar, etc.; Cf. igualmente Giovanni Testori in Três Prantos. Lisboa: Assírio & Alvim, 2012).
   Viagem à Demência dos Pássaros compõe-se de três secções: Monólogos do Báltico, Cartas à Arquitectura da Geada e Crónicas do Nevoeiro, que podem ser lidas autonomamente como entidades devidamente estruturadas, mas também como etapas de um périplo cujo término surge nos quatro últimos poemas do livro, curiosamente formado por dísticos isolados e por um poema de estrutura estrófica dual também ela dística. Eis três desses poemas que assinalam o fim da viagem referida no livro de Alberto Pereira:

De árvore em árvore,
crescer nos incêndios.

           (p 66)

Quantas paisagens cruéis são precisas
para que a pele cheire ao nevoeiro perfeito?

         (p 67)

O homem,
viagem à demência dos pássaros.

       (p 69)

Percebemos, portanto, que o poeta nos conduz, ao longo do livro, por uma viagem que não é nem geográfica nem histórica, mas que se enraíza nos grandes temas, que, ao longo dos séculos, têm perseguido o humano, fazendo-nos lembrar o homo viator dos autores medievais:



Houve um tempo em que as aves
não estavam embaciadas.

As asas não tiveram
a sorte de Ulisses
e Ítaca
é a melodia do pranto.

Ficámos sós,
a matar as teclas,
com o piano pendurado nos olhos.

        (p 57)


De entre esses temas ressaltam: o amor (pp 27, 37…) e a paixão e o que neles há de desencontro (p 53…), o sentido do estar-aqui – com um cunho nitidamente melancólico e desesperançado – (pp 39, 40…), a questão da divindade (pp 35…), o relacional, sobretudo a amada e o desejo (p 43) o tempo e a sua relação com a memória (p 51…) e com o fim.
   Arthur Dreyfus numa entrevista aquando da publicação de um livro que escreveu com Dominique Fernandez (Correspondance Indiscrète, Grasset 2016) diz-nos que existem duas formas de o escritor visar o seu objeto: de um modo direto e linear, correndo o risco de degenerar num certo panfletarismo ou de um modo de desvelamento aproximativo que paulatinamente se vai apropriando desse mesmo objeto e é, para Dreyfus, por este segundo caminho assumidamente metafórico que o aumento da poeticidade de um texto se dá. Alberto Pereira segue, então, esta segunda opção estético-literária, afirmando uma poesia torrentosa a fazer lembrar Ruy Belo e António Ramos Rosa, de uma metaforização neobarroca à imagem da portentosa lírica de Natália Correia e trazendo para esta Viagem à Demência dos Pássaros todo um léxico tradicionalmente extra literário ligado ao biológico e ao fisiológico:

(…) Palavras selvagens,
sílabas nuas de cieiro,
unhas a crescer nas estrofes
e um moinho onde possa matar
a hipertensão do ego

Nenhuma candeia se acende com lepra

      (p 18)

Parece que ainda te vejo chegar.
É indecente que continues a passear-te pelo meu corpo.
A insistir em masturbar falésias.
(…)
O whisky é um sedativo para as melodias que ladram.
Vou açaimando os animais revoltos no sótão cardíaco.

     (p 42)

Vivo no fígado,
Cidade enrugada que recita solidão à cirrose.
Coincide o teu corpo
com o que Saramago decifrou dos escombros de Deus.

    (p 43)

Esta experiência de trazer para a poesia um léxico de territórios que tradicionalmente lhe são alheios e que tivera um ponto alto em Limite de Idade de Vitorino Nemésio (1972), não sendo usual na poesia portuguesa contemporânea, encontra-se já em livros como Disrupção de Jorge Melícias (2008) e Chave de Ignição de Ruy Ventura (2009) e surge recorrentemente nos livros de Hugo Milhanas Machado, e agora também em Alberto Pereira.
    Seguindo de perto esta ideia do que o que está em causa nesta poesia, não é um hedonismo individualista e burguês que, por vezes, arremessa as escritas do diferente para o monturo do que prejudica a sanidade psíquica (seja isso o que for!), a escrita de Alberto Pereira veicula os aspetos e as inquietações essenciais do homem, assim, não deixa de ser significativo que o primeiro capítulo deste livro, Monólogos do Báltico, ponha em evidência aquilo que nos povos eslavos Baltas - povos que habitavam “desde a desembocadura do Niémen até ao golfo da Finlândia: Estónia, Letónia e Lituânia  e ainda aos Prussianos das margens do Vístula” (Cf. Maria Lamas in Mitologia Geral – Vol. II. Lisboa: Editorial Estampa 1991, p 87) - era primordial: a adoração da natureza, já que a Mitologia Balta não tinha a noção de Deus nem de vida para além da morte, antes venerava os astros, a água, os animais, as pedras e nas florestas sagradas, sobretudo para os lituanos (país fortemente arborizado), não se podia “caçar ou capturar qualquer animal incluindo as aves” (in Maria Lamas op. cit. p 88). A relação que Alberto Pereira estabelece entre a sua poesia  e o solo matricial de onde ela advém é, portanto, um marco importante desta escrita – ex.:

                        Depois a boca começou a ter cadastro.
                        A pele adquiriu a claridade fosca
                        da música de Sibelius
                        e duvidei se a tua garganta
                        era a Finlândia.

                        Todo o frio confessa,
                        deixaste-me o Báltico.

                          (p 24)


Eis, e na sequência de tudo isto, a referência a Sibelius o compositor do célebre poema sinfónico Finlândia op.26, bem como de Valsa Triste, ora, e atendendo à relação entre esta poesia e aquilo que no humano é, em autenticidade e originário, não me surpreende que o Mito Cosmogónico dos ugro-finlandeses parta exatamente de uns ovos que uma ave colocara nos joelhos de uma deusa (Luonnotar/ filha da natureza), que, melancólica, se deixava estar no oceano (Cf. Maria Lamas, op. cit. p 114). Não me surpreende também, por conseguinte, que num livro como este, que fala de pássaros, jamais apareça qualquer referência a Messiaen, músico que tanto compôs sobre pássaros, mas sempre com uma dimensão religiosa e redentora. À crença de Messiaen, Alberto Pereira opõe, neste livro, a melancolia de outros compositores românticos como Sibelius: Chopin, Beethoven e Tchaikovsky, aliás, Pushkin é referido na página 29, e não podemos esquecer que Eugene Onegin , a principal ópera de Tchaikosky se baseia exatamente no romance em verso homónimo de Pushkin. Claro que o poeta refere igualmente Mozart e Stravinsky, mas não porque lhe interesse o neoclassicismo do primeiro ou o moderno-serialismo do segundo: Viagem à demência dos pássaros nada tem a ver com esses movimentos artísticos: do primeiro convém reter tão-só a funesta existência e do segundo importa-se apenas o primeiro período, aquele em que havia sagrações da natureza e pássaros de fogo. Penso, pois, que este livro de Alberto Pereira, se no aspeto formal se insere numa escrita ousadamente metafórica e de um cheio neobarroco, ao nível do dito inscreve-se naquilo a que chamo os novos Romantismos dos séculos XX e XXI de que O Canto do Vento nos Ciprestes de Maria do Rosário Pedreira foi, talvez, a grande pedrada no charco. Encontramos neste livro de Alberto Pereira os temas do Primeiro e do Segundo Romantismo: a amada ausente, o desalento perante uma procura em vão, a geada, a penumbra, a névoa, etc., mas integrando imediatamente tudo isso nas “conquistas” do Modernismo e do Realismo Estético: o corpo, o desejo e a pulsão explicitamente sexualizada, a integração do quotidiano concreto, etc., aliás, as interconexões com o Realismo Lírico surgem à saciedade:
.
.
A beleza rouba muitas horas à devoção.
E eu que sempre gostei de mulheres de t-shirt mal alinhada.
Calças de ganga.
Cabelos soltos para o vento fazer o que quiser.
Mulheres com vestígios de areia por baixo das unhas
Para levarmos Agosto a todos os lugares.
Mas não.
Nunca me fizeste a vontade.
Passavas séculos com os dedos estendidos.
As cores a saírem dos frascos.
E o seu cheiro a matar a areia que delirava debaixo delas.
Sentado nesta esplanada,
Sei que a ruína se aluga aos órgãos mais inconformados.


                      (pp 42-43)

Vê-se nesta situação uma luta clara entre a mulher real e a mulher idealizada, bem como a impossibilidade da primeira se adaptar à segunda, logo, o eu-poético, pela frustração sentida, cai na inevitável melancolia, eixo maior da demência neste livro. Por outro lado, a resiliência e, concomitantemente, a capacidade de regeneração do eu-lírico não têm já nada a ver com os Romantismos do século XIX, onde a exacerbação do sentir era levado geralmente ao paroxismo:




Faire une perle d’une larme,
Du poète ici-bas voilà la passion,
Voilá son bien, sa vie, et son ambition.


  Musset, Alfred de. Poésies completes. Paris: Le Livre de Poche, 2006, p 546.


Puis, quando vient l’automne brumeuse,
Il se tait… avant les temps froids.
Hélas! Qu’elle doit être heureuse
La mort de l’oiseau – dans les bois!


  Nerval, Gérard de. Les Chimères, la bohême galante, petits châteaux de Bohême. Paris: Gallimard, 2005, p 88.


  Concluo, com um excerto de um brilhante ensaio de João de Mancelos: “Ao longo dos tempos, as aves têm fascinado os escritores das mais diversas civilizações. Nalguns casos, o literatura popularizou de tal forma um pássaro que este ficou para sempre associado a um poema, lenda ou narrativa” ( in O Marulhar de Versos Antigos, A Intertextualidade em Eugénio de Andrade. Lisboa: Edições Colibri, 2009, p 16). E João de Mancelos passa a uma exaustiva enumeração: o rouxinol (significando a noite) e a cotovia (significando o dia) em Romeu e Julieta de Shakespeare, o Corvo de Allan Poe, o rouxinol de Keats, etc. Em Viagem à demência dos pássaros de Alberto Pereira estes alcançam uma significação complexa, porque dotados de um hibridismo significativo: os pássaros são simultaneamente eles-mesmos, mas também uma representação dos humanos enquanto viagem à demência ou, para usar a expressão da Julia Kristeva, seres marcados por As novas doenças da alma, por conseguinte, estes pássaros dementes que somos, já nada têm a ver com Shakespeare ou Keats, somos As aves ambiciosas de Aristófanes, as vingativas de Hitchcock, as assassinas e justiceiras como o Melro de Junqueiro, portanto, e parafraseando os versos de Alberto Pereira, o homem de hoje não é mais do que uma viagem à demência, um voo sempre retomado à volta do mesmo, uma viagem sem estaca nem poiso, como o daqueles pássaros que jamais alcançarão a paz de um qualquer acolhimento.


                                   VICTOR OLIVEIRA MATEUS


Biblioteca- Museu República e Resistência em Lisboa, 21 de out. 2017.
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Publicado na Revista (online) Caliban, 22 de out. 2017.