domingo, 2 de julho de 2017


(Nota: segue abaixo o meu texto de Apresentação do livro nele referido , que decorreu na Sociedade Guilherme Cossoul - Avª D. Carlos I em Lisboa - no dia 26 de junho de 2017, este texto seria depois publicado na "Revista Caliban" a 26/6/2017).
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VASOS COMUNICANTES – ANTÓNIO RAMOS ROSA E GISELA RAMOS ROSA: DISSEMELHANÇAS E CONVERGÊNCIAS.
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     Transcrevo aqui, à laia de preâmbulo, um excerto de uma obra sobre Maurice Blanchot que diz assim: “A experiência do comentador junta-se aqui à do escritor: algo existe para ser dito e que não o foi ainda, mas aquilo que não foi ainda dito, nunca o virá a ser. Encontramo-nos, portanto, nesse espaço onde, como o relembra M. Blanchot, Aquiles jamais alcançará a tartaruga. A expedição do crítico, apesar de aparentemente visar um objetivo definido, se tem algo de cabotagem no lugar onde a obra criativa se ergue enquanto aventura, partilha também com esta última do seu carácter de itinerância. Assim como o escritor, o comentador soçobra sempre com a terra prometida à vista.” (Françoise Collin in “Maurice Blanchot et la question de l’écriture”. Paris: Gallimard, 1986, p 11, tradução minha). Esta citação tem aqui uma dupla função: atenua e desculpabiliza as falhas e imperfeições das notas que aqui avançarei e, por outro lado, refere um autor que António Ramos Rosa gostava tanto de reler e de citar e que, de um modo ou de outro, acabaria de preceder também essas inquirições/viagens que o poeta português sempre retomava nos seus poemas, nas suas traduções, nos seus ensaios.
     O livro que nos ocupa aqui neste texto revela-nos, através do seu título, que estamos perante um recetáculo onde duas vozes poéticas se derramam. Uma leitura apressada poder-nos-ia levar a pensar que essas duas vozes poéticas circulam no território da identidade pura, logo, da cópia, da repetição passiva, da contrafação. Ora, o que uma leitura mais atenta faz ressaltar, é que estamos perante duas vozes, que, no seu diálogo e partilha comum, ou apesar deles, não se despem de aspetos que no seu dizer são essenciais e lhes concedem uma diferenciação recíproca, aliás, Maria Teresa Dias Furtado, no Prefácio deste livro, salienta já, para além “do entendimento poético e humano”, a questão “da proximidade na diversidade” (Cf. p 10). 
   O aspeto do diálogo e da partilha é enfatizado várias vezes por ambos os poetas: “O que eu fiz de mais puro/como uma estrela no ar/(…)/ Foi este livro contigo/que nasceu como nasceu” (A.R.R., 218/1/ 1-2; A.R.R., 218/2/1-2,  a técnica de citação será sempre esta: iniciais do poeta, números de página, de estrofe, de versos); “Contigo a meu lado eu estou contigo” (A.R.R., 214/1/1); “Em teus olhos reais/alcanço o horizonte de um sol” (G.R.R., 196/1/1-2); “percorro as ruas da cidade em busca de um lugar/ sugerido pela flor que me acolhe junto a ti” (G.R.R., 24/1/3-4), todavia, este relacional se apresenta fortes convergências quanto à intencionalidade e à extensão, já quanto à intensão surgem fortes dissemelhanças: a atitude de Gisela Ramos Rosa é sempre a da deferência e do comedimento ante a portentosa figura do interlocutor, isto apesar de uma dedicatória que ousa (Cf. p 28), já António Ramos Rosa não se inibe de, num verso, referir a consanguinidade entre ambos, bem como de recorrer a processos de intitulação (Cf. p 76) e de nomeação submetendo, varias vezes, a este último procedimentos formais como jogos de palavras, assonâncias e rimas internas (Cf. p 72, p 214, p 218).
   Ao nível dos referidos procedimentos formais verificamos uma forte semelhança entre ambos os poetas com a tónica colocada numa certa linearidade discursiva (Cf. G.R.R. 52-53/1-4/1-25) e, por vezes, a sujeição da estrutura poemática a sequências alicerçadas em anáforas (Cf. p 112, 124) ou em jogos de palavras encadeadas e/ou emparelhadas (Cf. p 26). Não é possível também distinguir os poetas quanto à dimensão dos poemas e dos versos, já que ambos usam indiferenciadamente poemas longos e curtos, versos extensos e breves. Será, contudo, no léxico utilizado que aparecerá, embora de modo muito subtil, as variáveis indiciadoras de que para além do extremado afeto e da intensa partilha relacional, poética e sapiencial, dois universos poéticos distintos espreitam, embora respeitosamente se resguardem, já que o momento é de construção no idêntico e não de afirmação do distinto. Ilustre-se isto com os seguintes versos: “Pressinto o som das cores/ quando sinto o jardim que se abre a meu olhar/ e nele descubro esboços de Deus/ na natureza” (G.R.R., 204/1/15-18), não só o termo Deus nunca é referido por A.R.R., como o poeta jamais subordina a Natureza a qualquer entidade que, a nível ontológico, lhe seja hierarquicamente superior, aliás, e apesar de um ou outro título de livro e de um ou outro título de poema, A.R.R. – à imagem de Heidegger, que citava com frequência – colocava a sua escrita aquém da pergunta pela divindade: “O poema dirige-se para o segredo do oriente/ interrogando as coisas imediatas e simples/(…) situando o texto formulado/ numa galáxia informulada” (A.R.R., 182/2/ 1-7), o fundamental – e fundante – no poeta era a linguagem e, mais especificamente, a linguagem poética e a construção do poema no seu diálogo sempre retomado com o mundo natural e humano. A própria consanguinidade acima referida está subordinada aos elementos do mundo natural: “Minha estranha estrela consanguínea/ em quantas estrelas brilhas/ pela janela do teu sangue/ és filha do vento e de um grão de terra/ e da febre de um instante de alegria/ sobre uma onda do mar” (p 122). Mas as dissemelhanças ao nível semântico parecem escapar ao diálogo poético, sem que os próprios autores pareçam disso aperceber-se: por duas vezes G.R.R. usa a palavra “templo” (Cf. p 44, p 84) e a sua incursão no pictural, embora seguindo de perto A.R.R. (as árvores, as pedras, os rios, o branco, o azul, o verde…), por uma vez se distancia dele: “o poema destina-se ao lilás de um encontro” (G.R.R., 96/1/2) através de uma cor que tem uma simbologia própria em dadas formas de religiosidade. Assim, se A.R.R. mantém à distância a problemática teológica, optando por uma sacralização do mundo natural, algo situada entre as várias formas de panteísmo e as visões mítico-mágicas (seria interessante, por exemplo, que alguém fizesse um estudo intertextual das poesias da António Ramos Rosa e de Dora Ferreira da Silva, poeta brasileira que não me consta que ele tivesse lido), já Gisela Ramos Rosa tende para uma atitude mais radical; dito de outra forma: se em A.R.R. há uma comunhão com o mundo natural que é da ordem do sagrado, em G.R.R. tende-se, não para uma comunhão, mas para uma fusão (ou um apagamento em?) com esse mesmo mundo: “vou pelos reflexos das imagens que me chamam/ e a lei não encobre a claridade do dia” (G.R.R., 128/2/1-2); “Senti as raízes do infinito/ nesse arco onde o tempo tece a passagem/ e as correntes abrem os caminhos” (G.R.R., 62/1/1-3).
     Para concluir, direi que é este entrecruzamento de convergências e dissemelhanças, que acaba conduzindo os dois intervenientes deste diálogo poético a uma outra posição relacionada agora com o conceito de “aberto”, que surge à saciedade neste livro e que não apresenta qualquer conotação teológica, como em autores declaradamente cristãos, veja-se, por exemplo, a posição do filósofo e teólogo ortodoxo Jean-Yves Leloup (Cf. “L’enracinement et l’Ouverture”.Paris: Albin Michel, 1995) onde o encontro e o diálogo com o outro e o diferente são tão-só um meio para “abrir” uma via mais larga e mais luminosa para a divindade. Em “Vasos comunicantes” o “aberto” surge invariavelmente associado à apreensão do outro nas suas múltiplas formas: “O Aberto não esconde o que tu vês/ nem o que tu não podes ver/ tu vês e respiras com todos os teus sentidos” (A.R.R., 68/1/1-3: Cf. também páginas 77, 132, 140, 166 e 198), em última instância o aberto é o que, de desvelamento em desvelamento, me faz aceder à linguagem e faculta a construção do poema: “ na casa o silêncio é um lugar que conquista/ as portas que se abrem para o corredor/ e ao fundo entro na portada que me leva/ à espiral da linguagem à suspensão do tempo” (G.R.R., 140/4/1-4), porque, acima de tudo, o que vinca esta obra é o entendimento da poesia e do poema (“O poema é uma teia/de que aranha de que areia/ que se desfaz e se tece/ e se inflecte como uma carícia” A.R.R., 118/1/1-5) e uma profunda comunhão da intimidade, que, vendo bem, é igualmente poesia (“ O teu sorriso é sempre um rosto/ que desenha o nosso encontro” G.R.R., 132/3/1-2).
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Mateus, Victor Oliveira. Revista Caliban, 26 de junho de 2017.
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