quarta-feira, 26 de abril de 2017


O som pairou no indiscernível, se bem que não no infinito nem tão pouco no desejado espaço da consonância de vozes, sim, por um instante pensou ouvir Plotia, pensou ouvir a flutuante opacidade da sua voz (...) compreendendo, no entanto, com uma maior certeza e logo de seguida, que se tratava da voz do rapaz, e a naturalidade sem surpresa com que aceitou o seu regresso levou-o em calma torrente por entre as margens terrenas, despreocupadamente em frente, despreocupado em relação à alegria ou à decepção (...). E de novo lhe pareceu que se formavam palavras na boca e que dizia: "Por que é que voltaste? Não te quero voltar a ouvir." E de novo não sabia se tinha falado em voz alta, e também não sabia se o rapaz estava na realidade no quarto, se havia uma resposta a esperar ou se não havia; era uma espera flutuante, quase como se em qualquer sítio estivessem a afinar uma lira antes de se iniciar a canção, e de novo voltou a soar bem perto, tão perto e sem causar espanto, e no entanto distante, como se viesse do mar, esvaindo-se de luar e brilhando muito levemente: "Não me mandes embora!" "Mando", respondeu ele. "Tu barras-me o caminho, quero ouvir a outra voz, tu és uma pseudo-voz, tenho de ir à procura da outra." Ouviu-se a seguir, "Sou a ressonância que te pertence, desde o princípio e para lá de qualquer morte, para sempre".Era como que uma tentação, estava prenhe de doce atractivo, cheio de simplicidade e cheio de sonho, um chamamento de sonho, para que ele mais uma vez se voltasse, um eco do país de infância. E a voz do rapaz, balsâmica, próxima e remota, conterrânea, suave, continuou: "Eterno é o eco do teu canto." Então ele disse: "Não, não quero ouvir mais o eco da minha voz; aguardo a voz que está para lá da minha." - "Já não consegues calar a ressonância dos corações; o seu eco está contigo, tão irrevogável como a tua sombra!" (...) Decorreu de novo um tempo longo, indeterminado, até vir a resposta. "Nunca mais podes ser solitário, nunca, nunca mais, porque o que soou de ti era maior do que tu, é maior do que a tua solidão, e já não o consegues aniquilar; oh, Virgílio, no canto da tua solidão estão todas as vozes. estão todos os mundos, eles estão contigo juntamente com a sua ressonância e romperam para todo o sempre a tua solidão, para todo o sempre entrelaçados com todo o futuro, porque a tua voz, Virgílio, foi desde o início a voz do deus." (...) E de súbito perguntou: "Quem és tu? Como te chamas?" - "Sou Lysânias", foi a resposta, vinda desta vez e indubitavelmente de muito mais perto (...) não tinha ele já decidido deixar o pequeno companheiro da noite no flutuante anonimato de onde tinha surgido? Não o tinha ele por isso mesmo mandado de volta para o anonimato? E admirado, continuou a perguntar: "Eu mandei-te embora... porque não foste?" - "Mas eu fui", ouviu-se em resposta, agora de muito perto, naquela voz de rapaz um pouco rústica, familiar e jovial, cuja modéstia escondia jocosamente uma leve astúcia de camponês, ardilosamente aguardando a próxima pergunta. Sem se dar conta disso, entrou no jogo: "Bom, tu foste-te embora... mas, no entanto, estás aqui." - "Não me proibiste de esperar em frente da tua porta... e agora chamaste."


  Broch, Hermann. A Morte de Virgílio, Primeiro Volume. Lisboa: Relógio d'Água, S/d., pp 196-199.
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