sexta-feira, 24 de março de 2017


    Para Nussbaum, o que deverá ser sublinhado é a dimensão cognitiva da literatura (ao contrário da história que apenas procura relatar o que sucedeu), a abertura para novas possibilidades ontológicas que o dizer literário possibilita: "As Aristotle observed, it is deep, and conducive to our inquiry about how to live, because it does not simply (as history does) record that this or that event happened; it searches for patterns of possibility - of choice, and circumstance, and the interaction between choice and circumstance - that turn up in human lives with such a persistence that they must be regarded as our possibilities. And so our interest in literature becomes (...) cognitive: an interest in finding out (by seeing and feeling the otherwise perceiving) what possibilities (and tragic impossibilities) life offers to us, what hopes and fears for ourselves it underwrites or subverts" (Nussbaum, 1990: 171). ´É na terceira parte do seu ensaio que Nussbaum se detém com maior detalhe no conceito de "Perceptive Equilibrium". Reportando-se ao conceito de "reflective equilibrium", cunhado por John Rawls em A Theory of Justice, Nussbaum afirma que aqui estamos perante uma condição a que chegamos quando aplicamos um juízo intelectual de um modo consistente e desprovido de tensão (poderíamos afirmar em clave derridiana que aqui estamos a falar de lei e não de justiça); as condições que aqui estão em jogo prendem-se com os seus princípios, que deverão ser gerais na forma e universais na sua aplicação, públicos e disponíveis a todos; deverão impor um ordenamento geral nas reivindicações que se opõem, devendo ser encarados como finais e conclusivos.
   Um dos aspectos decisivos que marcará a argumentação de Nussbaum é a importância que a autora de The Fragility of Goodness concede às emoções - valorizando esta que percorrerá a sua obra como um basso continuo. Nussbaum manifestará a sua desconfiança perante o carácter assepticamente universalizante e abstracto que tal julgamento inevitavelment produz, procurando antes celebrar a relevância dos sentimentos e a centralidade da imersão contextual do hic et nunc particular da condição de cada sujeito (...)
   Justamente aquilo que a autora procurará defender é que, em muitos casos, as emoções poderão constituir um guia seguro para um juízo mais correcto, sendo que as formulações gerais e universais poderão ser inadequadas perante a complexidade de situações particulares, de tal modo que juízos particulares, imersos num contexto específico, poderão exibir um valor moral de que juízos com um pendor mais reflexivo ou geral se encontram destituídos. É nessa medida que a autora preconiza o 'perceptive equilibrium', corporizado pela personagem Strether, e que constitui uma resposta àquilo que é novo e que lida com os particulares da existência (...).
   A tematização deste conceito-chave permite-nos centrar a nossa atenção sobre a relação entre leitor e percepção moral. A trama narrativa de que se serve o romance, cultiva a nossa capacidade de contemplar e de valorizar a dimensão particular da existência, a invenção do absolutamente singular numa certa postura derridiana de paixão pela aporia do impossível (...). O romance, de acordo com o postulado de Nussbaum (e aqui a autora reporta-se a James), propicia uma imaginação vigilante e responsável ("responsive", com os seus ecos steinerianos) que diligentemente se detêm em cada singularidade irredutível.
   Também no Capítulo VI da sua obra mais recente - Not for Profit, Why Democracy Needs the Humanities, intitulado "Cultivating Imagination: Literature and the Arts", Nussbaum discute a importância daquilo a que chama imaginação narrativa (...). Nussbaum refere o caso do filósofo John Stuart Mill que, muito embora tendo tido uma extraordinária educação na sua infância, não tivera oportunidade de cultivar os seus recursos emocionais e imaginativos. Tendo sofrido uma depressão na sua vida adulta, Mill considerou que a sua recuperação se ficou a dever à influência exercida pela poesia de William Wordsworth; mais tarde, esclarece Nussbaum, Mill desenvolveu uma perspectiva daquilo a que chamou a "religião da humanidade", baseada no cultivo da simpatia que houvera deslindado através da sua experiência da poesia, Nussbaum chega a utilizar a formulação "empathetic imagination" (...). Cultivar a imaginação de acordo com a expressão de Nussbaum, tendo como horizonte último a amplificação de uma Poética da Obrigação - tal é. parece-me, uma das mais importantes lições que a reflexão de Nussbaum nos lega.


  Soeiro, Ricardo Gil. A Sabedoria da Incerteza, Imaginação Literária e Poética da Obrigação. Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2015, pp 39-43.
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