quarta-feira, 29 de março de 2017


   Eugénio de Andrade foi, a par de Casimiro de Brito (1938), Egipto Gonçalves (1920-2001) ou Isabel Cristina Pires (1953), um dos poetas portugueses  contemporâneos mais viajados, tendo no seu passaporte carimbo de países de África, América, Ásia e Europa, com nítida preferência para as regiões mediterrânicas. Havia sempre uma boa razão para o escritor percorrer o mundo: a participação num encontro literário, o simples repouso, ou a procura das paisagens físicas e humanas que inspiraram autores dilectos, como Vergílio (70-19a.C.) e Horácio (65-8 a.C.).
   Nesta viagem aos Estados Unidos e ao Canadá, o objectivo inicial de Eugénio e do seu companheiro de jornada, o tradutor norte-americano Alexis Levitin, era cumprir uma dúzia de leituras bilingues, da sua obra poética. Os espaços escolhidos incluíam clubes, associações, centros de arte, e as universidades de Santa Bárbara, Harvard, Brown, Albany, Columbia e Temple, nalgumas das quais existem departamentos de estudos lusófonos (Andrade, 1995:187). As leituras foram frequentemente seguidas de debate, visando questões como a escrita, a tradução e o gosto literário. Trata-se, portanto, na tipologia proposta por Fernando Cristóvão, de uma viagem erudita, em que imperam a curiosidade intelectual, e a partilha de saber, em instituições vocacionadas para a arte e para o ensino da literatura (Cristóvão, 1999:48-9).
   No entanto, à margem desse contacto com os amantes das letras, ocorreram descobertas e imprevistos que concederam uma dimensão extraordinária à visita: o desafio de perceber outros valores e formas de ser. (...) Em simultâneo, ao perceber o Outro e ao ver-se como tal, o Eu reconhece-se como um entre vários, e exercita a auto-compreensão, através do contraste. Neste intercâmbio fluído e recíproco entre o Eu e o Outro, convivem receios e estereótipos, mas também imagens objectivas e interpretações científicas, que exprimem a curiosidade, repulsa ou atracção pela diferença.
   Na sua viagem pela terra do Outro, a imensidão da paisagem natural estaduniense foi o aspecto que de imediato mais impressionou Eugénio (...)
   Por contraste, a paisagem urbana, de uma brutalidade inesperada, perturba-o: Eugénio sempre preferiu os espaços rurais ou marítimos, menos enxameados pelos turistas e mais convidativos à introspecção, essencial ao labor da escrita.


 Mancelos, João de. O Marulhar de Versos Antigos, A Intertextualidade em Eugénio de Andrade. Lisboa: Edições Colibri, 2009, 134-135.
.
.
.