quinta-feira, 30 de março de 2017


(...) prenhe de desgraça permanece o sono dos rebanhos, indomada permanece a agitação terrena, inextinguível o fogo, entregue ao esmagador raio do nada permanece o amor, e sobre a caverna da noite está, intemporal, a tempestade.
   Fuga, oh fuga! a mãe continua sem se poder chamar. Somos órfãos na origem dos rebanhos, não podemos chamar em sonhos por nenhum nome, nenhum tem valor nas trevas da perfeita fusão -, e tu, meu pequeno companheiro da noite, que te juntaste a mim para seres guia, será que eu te posso na realidade chamar? Foste enviado pelo teu, pelo meu destino, para eu falar contigo? Também te sentes ameaçado pela intemporalidade? Também ela se esconde sob a tua noite? Oh, encosta-te a mim, meu pequeno irmão gémeo, oh, encosta-te a mim; desvio os meus olhos da ameaça e dirijo-os para ti, esperando, pela última vez, esperando poder voltar do isolamento, voltar contigo para a abóboda escura, que foi erguida dentro de mim como uma morada que eu já não conheço, oh, entra comigo nesta familiaridade que como elemento estranhíssimo bate nas minhas veias com nova familiaridade, e na qual eu gostaria de te deixar participar; talvez então o que há de mais estranho, que até eu próprio, deixe de me ser estranho; oh, funde-te comigo meu pequeno irmão gémeo, funde-te a mim, e quando chorares a infância perdida, quando chorares a mãe perdida, voltarás a encontrá-las em mim, porque te recebo nos meus braços e na minha alma. Mais uma vez nos seja dado ficar na caverna flutuante da noite, somente mais uma única vez, e que nos seja dado ouvir juntos o flutuar da noite e dos seus sonhos, apesar do seu reino intermédio e da sua doce realidade -, no entanto tu ainda não sabes, meu pequeno irmão, porque és jovem, de que mais profundas interioridades do nosso ser emerge a esperança da noite, abrangendo tudo de tal maneira e de tal maneira insuflando alma na sua imutabilidade, de tal maneira suave e leve promessa de saudade na sua aflição, que precisamos de muito tempo para a ouvirmos, a ela e ao seu medo, que se ergue à nossa volta como uma serra de ecos (...) como se de novo todo o reflexo de um passado há muito vivido quisesse voltar a brilhar e com tal esperança, como se encerrasse em si toda a promessa do definitivo -, oh, meu pequeno irmão, experimentei isso, porque sou um velho, mais velho do que os meus próprios anos, porque sinto em mim toda a fragilidade e toda a decadência, eu experimentei isso, porque me encaminho para o fim; ah, só ao desejarmos a morte desejamos a vida, e em mim, incessantemente minando e desconjuntando está o trabalho de toda a ânsia de morte, sem pausa, (...) só o moribundo reconhece a comunhão, reconhece o amor, reconhece o reino intermédio, só no crepúsculo e na despedida reconhecemos o sono, cuja profundíssima comunhão não tem lascívia (...) ah, meu pequeno companheiro da noite, também irás um dia reconhecer tudo isto, também tu um dia estarás sentado no limiar da margem (...). Sonho, oh, sonho! Enquanto fazemos poesia não partimos,  enquanto permanecemos no reino intermédio do nosso dia-noite, oferecemos uns aos outros todas as esperanças de sonho, toda a comunhão de saudade, toda a esperança de amor, e por isso, meu pequeno irmão, por causa desta esperança, por causa desta saudade não te afastes de mim; não quero saber o teu nome, que lança sombra, não te quero chamar, nem para a partida nem para o regresso, mas sem que te possam chamar e sem seres chamado, fica comigo, para que o amor fique na promessa da sua eternidade, fica comigo no crepúsculo, fica comigo na margem do rio. (...) Ouves o meu pedido? Poderá ainda o meu pedido ouvir-te, ouvindo-se e si próprio, fugido do destino, redimido da dor?
(...) Assim estava ele, ali sentado, sentia no joelho o calor do ombro do rapaz que se tinha aproximado até quase se encostar, mas sem no entanto o fazer, e ele sentia uma grande vontade de libertar os dedos cada vez mais presos, para, suave e despercebidamente, acariciar a cabeleira infantil, revolta e escura como a noite que ele via de cima (...) "Vai... vai à festa", conseguiu ainda dizer com voz rouca, enquanto a mão aberta.dirigida para cima, esboçava apenas a tentativa de empurrar o rapaz, que hesitantemente recuava para a porta não lhe tocando, mas acrescentando sempre a distância, e com repelões bruscos depois. "Vai... vai", repetiu arfando (...). Mas lentamente sentiu-se melhor - lentamente, de facto, e a muito custo, e com muito sofrimento - e voltou à respiração, ao descanso, ao silêncio.

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 Broch, Hermann. A Morte de Virgílio, Primeiro Volume. Lisboa: Relógio d'Água, S/d, pp 74-79.
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