quinta-feira, 23 de março de 2017


   Um autor como Hans-Holger MalcomeB, em Primare Gestalt und Sckundarer Diskurs, Die Diskussion des Authentischen Ausgchend von George Steiner (2005), chega mesmo a falar de uma Kehre steineriana, de uma viragem que nos leva do pessimismo das obras iniciais, onde a visão solar da existência naufraga e o rumor dos deuses nos está abandonando, ao optimismo velado das obras mais tardias, onde a esperança espreita timidamente. De acordo com esta leitura, até ao período que abarca obras como In Bluebrard's Castle, The Death of Tragedy e Language and Silence, o pensamento de Steiner está aprisionado pelo espectro do silêncio e pela paradoxal conivência da alta cultura com a barbárie, observado-se a partir de 1985 (data da conferência "Real Presences", proferida na Universidade de Cambridge) uma viragem que nos leva do inumano, do silêncio e do niilismo à salvação pela arte que podemos descortinar em Real Presences O certo é que na obra steineriana se entrelaçam, a todo o momento, cintilantes esperanças e sombrios desassossegos, subsistindo uma dialéctica jamais resolvida entre sombra e luz, entre fragmento e totalidade, entre silêncio e palavra, entre a tragédia absoluta e uma difícil esperança. De resto, o importante ensaio "The Long Life of of the Mataphor: An Approach to the Shoah", publicado em 1987 e abordando a temática da ausência de Deus em Auschwitz, vem justamente contrariar a linear evolução cronológica defendida por MalcomeB. Por outro lado, a despeito da sua hermenêutica da confiança (imersa num logocentrismo que não é desprovido de alguns espinhos epistemológicos de que jamais se desembaraçará) a que, pretensamente, Steiner se renderá nas suas obras mais recentes, o facto é que mesmo a espera com que termina Real Presences está assombrada pela espera vazia que nos ameaça todos os instantes - um pouco à semelhança do que sucede em Waiting for Godot, de Beckett (obra que, aliás, é analisada por Steiner em diversas ocasiões).
   Um dos exemplos paradigmáticos de modo como a forma mentis de Steiner continua a ser pontuada por um cepticismo penetrante é aquilo a que o próprio chama "o paradoxo de Cordélia", a que me reportei na introdução. Trata-se de uma pungente contradição que, interessando-nos directamente para o que nos move com a presente investigação, foi tematizada por Steiner em Le Silence des Livres (2006) e em My Unwritten Books (2008), bem como em ensaios relevantes como o já mencionado "The Humanities - At Twilight?" (1999), "The Muses' Farewell" (2002) e "A New Literacy" (2007). Por exemplo, no ensaio "The Muses' Farewell" (2002:156). Steiner pondera a hipótese, provisória e inquietante, segundo a qual a capacidade de respondermos à abstracção e à ficção (de nelas nos concentrarmos intensamente) nos desvia da concretude dos inadiáveis apelos do real. Steiner concretiza: o lamento por Cordélia, a imersão num adágio de Mahler ou a contemplação de uma tela de Vermeer (...) pela intensidade que veiculam, diferem das reivindicações ásperas e da imperfeição que a práxis constantemente nos lança. Quanto mais pungentemente vulneráveis se mostram as nossas afinidades perante a grande arte (a música, a poesia ou metafísica), menos desperta se torna a nossa atenção em relação à carência humana e à barbárie política, mais embotados nos tornamos perante o mundo da acção por oposição ao mundo solipsista que os produtos da ficção edificam. O grito da rua, que mal nos chega aos ouvidos, pouco parece valer quando comparado com aquele que, Lear lança a Cordélia.
   De facto, este agudo paradoxo tem implicações ao nível da avaliação que podemos fazer da aposta steiriana no sentido do Sentido, na medida em que esta, embora profundamente pungente do ponto de vista especulativo, evidencia uma passividade que a debilita conceptualmente e que, dado que postula que "a cortina está corrida entre o leitor e o mundo" (Steiner, 1996:22), não permite que o mundo da leitura penetre no mundo da acção, assim se desvanecendo o radical horizonte ético com que Steiner encetou a sua hermenêutica do pós-holocausto.


   Soeiro, Ricardo Gil. A Sabedoria da Incerteza, Imaginação Literária e Poética da Obrigação. Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2015, pp 29-31.
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