sábado, 31 de dezembro de 2016




um velho ramo de árvore
balança na brisa do rio
a tarde esconde o canto das aves



Rocha, Rui. Taotologias. Fafe: Editora Labirinto, 2016, p 23.
.
.
Nota - A poesia do luso-macaense Rui Rocha, recusando todo o tipo de narratividade bem como uma Lógica Formal de cariz ocidental, baseia-se fundamentalmente nas filosofias do oriente, sobretudo na Zen, assim, é intento desta escrita a apreensão do resplendor dos instantes simultaneamente belos, completos e absolutos. Sobre esta poesia escreveram já: José Carlos Seabra Pereira, no seu "O Delta de Macau" - uma exaustiva e rigorosa História da Literatura de Macau -, Yvette Centeno numa postagem recente no seu blogue,,, e há também um longo artigo meu no Nº 44 da Revista de Cultura/ Review of Culture (International/ Macao).
.
.
.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016


A presente obra - que engloba poemas desde o livro A Flor e a Noite (1955) até ao livro As Linhas que Perduram (2016) - foi publicada por ocasião do Doutoramento Honoris Causa atribuído a António Salvado pela Universidade da Beira Interior.
.
.
    "O olhar de ver"


Em tudo o que tu vês    eu moro aí,
em tudo o meu olhar    a ti só vê -
conforto de presença tão contínuo
que não sabe onde surge    onde termina
dentro do modo    o tempo deste ver.

Nem eu alcanço outro horizonte além,
nem tu aqui outra maior distância -
e os olhos bem juntinhos não se lembram
de sentirem em si diverso alento
que não seja    -a tremerem-    a constância.

Por isso    como um lanço    os nossos corpos
ignoram qualquer 'spaço que os separe -
muito encostados    poros sobre poros
olham apenas o prazer que é nosso
com mais desejo encima    até fartarem.


 Salvadp, António. Poemas escolhidos. Castelo Branco: A 23 Edições, p 97 (Nota de apresentação de Margarida Gil dos Reis).
.
.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016


  "A um poeta da estirpe de Horácio"


Fizeste um monumento
de lata    não de bronze
se bem que a tua mente
seja bronze o que esconde.
Nem a mais fina chuva
o há-de corroer
nem esse vento agudo
poderá desfazê-lo.

Com tal perenidade
a ter o monumento,
os anos não são nada
pelo fluir do tempo.
De modo que em ti vive
certa posteridade,
ó rejuvenescido
pelo brilho da lata!


  Salvado, António. Poemas escolhidos. Castelo Branco: A 23 Edições, 2016, pp 51-52 (Nota de apresentação de Margarida Gil dos Reis).

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016


   "De Dinamene a Camões"


Dentro da minha morte vive o breve
engano de teus versos magoados
e a trémula tristeza tão perene
que a vida fez mais longa de alongada

Tens nas mãos a memória quando escrevem
as secretas palavras celebradas
e nos lábios sem ânimo    apartado
o meu nome de carne e de mistério

Fui para ti o musgo sobre a pedra
a placidez das ondas entre o grito
a estrela humilde no teu céu de espera
ao sofrimento    à mágoa    à piedade

Repouso nos teus versos    Mas quem sabe
o sal maior das lágrimas vertidas?


  Salvado, António. Poemas Escolhidos. Castelo Branco: A.23 Edições, 2016, p 26 (Nota de apresentação de Margarida Gil dos Reis).
.
.

domingo, 25 de dezembro de 2016


Há alguns anos assisti, na Bulhosa de Entre Campos e durante a apresentação de um livro, a uma discussão interessante entre o autor desse mesmo livro e o Prof. Eugénio Lisboa. Defendia este último, com aquela lucidez e o vasto saber que todos lhe reconhecemos, que apensar a um romance o rótulo de "literatura gay" seria afastar dele,, de imediato, todo um conjunto de leitores. Eugénio Lisboa ilustrou na altura a sua posição com um romance de Gore Vidal que ele considerava um excelente livro. Pessoalmente sempre me identifiquei com esta posição: nunca consegui perceber o que é literatura feminina, literatura masculina, literatura gay, literatura straight, etc.Nunca dei para o peditório de certos processos de rotulagem! Para o leitor compulsivo que sou, existem apenas temas, que são, foram e serão universais (a rejeição, o desamor, a angústia, a esperança, a melancolia, etc.) e existem igualmente procedimentos estílisticos inevitavelmente condicionados por variáveis históricas, sociais, políticas, etc. Se os grandes temas são abrangentes, já as referidas variáveis inserem-se, através de combinatórias múltiplas, em paradigmas que, teoricamente se assumem como explicativos e rígidos, mas na prática são bem mais fluídos do que aquilo porque se pretendiam. Vem isto a propósito do romance "Paris-Austerlitz" de Rafael Chirbes que aborda, através dos tais procedimentos estilísticos que não irei desenvolver aqui ( tempo narrativo descontínuo, apesar de analepses e resumos recusa de uma narração fragmentária, introspeção assumidamente proustiana do narrador, etc.,etc.), para além desses procedimentos, encontramos aqui temas que polvilham a literatura universal: o etarismo, que aqui é entre dois seres do mesmo sexo, e as condicionantes educacionais e económicas como fatores fundamentais nas ruturas amorosas. Este é o nó górdio da obra, bem como o fator que leva ao título do "El mundo": "O amor como armadilha mortal".
Estamos aqui, e no que diz respeito A UM DOS TEMAS da relação em si, longe do realismo "cru" de Michael Cunnynghan e de Edmund White; da metáfora social e política do "Line of Beauty" de Hollinghurst, do realismo decadentista e escatológico de Cyril Collard ou de Renaud Camus com o seu "Tricks". Rafael Chirbes, pela contenção e delicadeza da escrita integra-se, na minha opinião, em certas linhas do realismo lírico, onde poderemos encontrar escritores e obras como o italiano Pier Vittorio Tondelli e, o "Terre lointaine" de Julien Green, no que diz respeito àquilo a que eu chamei "o proustianismo" do narrador será interessante comparar este livro com as análises do mundo interior, feitas nos seus romances por Hervé Guibert, sobretudo no seu "A l'ami qui ne m'a sauvé la vie".


V.O.M.
.

.
 Prometi. Regressaria a Madrid depois da vernissage. Passaria a gerir a empresa familiar. Tudo o que eles quisessem.
   No regresso, não quis contar a Michel aquela farsa, nem sequer lhe disse que daí em diante deixaria de ter problemas económicos. Não me movia qualquer vontade de ocultação. Mas a minha ausência durante as duas semanas que passei em Madrid tinha abalado fortemente a nossa relação, e imaginei que, se soubesse que eu já não estava economicamente dependente dele, Michel daria por certo que o abandonaria em breve. Esta ideia obcecava-o desde o momento em que lhe anunciara a minha viagem. Resmungava constantemente: eu sei como as coisas são. Achas que não percebo? Percebo, pois. Não é a primeira vez que isto me acontece.
   Disse para comigo que ele se iria apercebendo a pouco e pouco da questão do dinheiro e que depois haveria tempo para lhe explicar tudo com calma. A nossa despedida na gare de Austerlitz tinha sido patética: copos na buvette, olhos lacrimejantes e vermelhos, lábios húmidos, um adejar de escuros presságios. Parado junto à linha, cada vez mais diminuto à medida que o comboio ganhava velocidade, Michel pareceu-me envelhecido. Foi a primeira aparição de um Michel inseguro e trágico que tantas vezes voltaria a ver ao longo dos meses seguintes. E, possivelmente, foi também a primeira vez que me detive a pensar no facto de que vivia com um homem quase trinta anos mais velho do que eu. Je sais bien que tu ne vas pas revenir..
   Escondi entre os meus utensílios de pintor o novo livro de cheques do Banco Santander que tinha trazido de Madrid. Depositava na caixa comum em que guardávamos o dinheiro pequenas quantias que extraía dessa conta, o que me permitia comprar, cada vez com menos discrição, materiais de trabalho. Começava a ser-me indiferente que ele descobrisse a minha nova situação económica, posso até dizer que essa segurança me tornava mais afetuoso (...). Michel não compreendia que eu, podendo mudar-me, preferisse continuar a viver com ele. Eu fazia os possíveis para vencer as dúvidas que, causadas pela desconfiança dele, me assaltavam com frequência. Ocorria-me, sim, que podia viver de outra forma e libertar-me de uma situação de pobreza que me parecia cada vez mais artificial (...).
   Mas estava, ou queria estar, apaixonado por ele: que mais dá, que diferença faz, querida Jeanine? Nunca tencionei magoá-lo. Gostava de Michel. Desejava-o, as piadas dele faziam-me rir, atraía-me a carnalidade que emanava a cada movimento. Ao fim de algum tempo, já não sabia se o que sentia por ele era amor (que diabo é isso, ao certo?: à força de o analisarmos e dissecarmos acabamos por perdê-lo), mas sim,posso jurar que foi uma entrega  sem resistência, não porque não quisesse resistir, mas porque não pude. (...) Agradava-me a solidão entre aqueles móveis desengonçados. Era generosa a simples decisão de permanecer ali, quando podia muito bem mudar da casa. Foi assim. Durante alguns meses, pelo menos, foi assim.


  Chirbes, Rafael. Paris-Austerliz. Porto: Assírio & Alvim, 2016, pp 74-76 (Tradução de Rui Pires Cabral).
.
.
.

sábado, 17 de dezembro de 2016


   Est-ce que ta douce maman va venir te voir?, ria-se. Tinha-me ouvido falar mal dela inúmeras vezes e parecia-lhe incrível que viesse visitar-me a Paris. Veio, de facto, mas evitei que eles se encontrassem. Pouco tempo depois; Michel começou a recriminar-me por não o ter apresentado à minha mãe (tiveste vergonha de mim), quando ele, pelo contrário, além de me levar a Lecreux para conhecer a dele, tinha-me dado guarida durante meses, tinha-me alimentado e vestido, tinha-me dado até l'argent de poche para gastar no bar, no cinema, ou para comprar roupa e tabaco. Nunca o disse exatamente assim, mas eu pressentia por detrás dessas censuras a reivindicação dos direitos que a minha dívida para com ele lhe concedia. Não era um homem mesquinho, mas as suas insinuações destilavam mesquinhez. Quando lhe disse que não suportava cenas de ciúmes, replicou: não consigo evitar, é uma coisa hereditária;(...) O alcoolismo e os ciúmes são hereditários, como a sífilis, disse-me. Fico informado, Michel, retorqui com um gesto de cansaço. Mas os ciúmes do teu pai resultavam do facto de a tua mãe ter trabalhado como puta para os invasores da pátria, e eu trabalho como desenhador numa empresa de decoração. Não é exatamente a mesma coisa. Disse-lho de muito mau modo e arrependi-me assim que pronunciei tais palavras, e nessa mesma noite fui ao bar dos marroquinos para lhe pedir desculpa. Não o encontrei, nem em casa. Sentia-me culpado. Michel jamais me trairia, era um cão fiel (igual a si próprio até ao limite do tédio). Era o mesmo petit pays en devenu prolétaire que me tinha acolhido em sua casa, e os seus modos, a sua exigência de exclusividade, e sua vontade de me possuir por inteiro e que eu o possuísse em iguais condições foram assim desde o primeiro dia. No início, esse ardor lisonjeou-me, deu-me segurança, devolveu-me um certo orgulho e salvou-me do meu próprio desamparo, mas agora já não era assim.
   A primeira vez. Noite de sexta-feira. (...) Nem sequer me ocorrera que eu pudesse interessar àquele tipo corpulento e desalinhado que fumava Gitanes como um louco, mas passámos na cama o resto do serão de sexta-feira. Fumámos, bebemos, e eu abriguei-me num corpo cuja solidez parecia capaz de suportar qualquer prova de resistência. Ele pôs a tocar no gira-discos as canções mais sentimentais de Brassens: Par le petit garçon qui meurt près de sa mère. O disco girava e eu abraçava o homem e sentia vontade de chorar, como se fosse eu a criança moribunda e ele me lamentasse muito.


 Chirbes, Rafael. Paris-Austerlitz. Porto: Assírio & Alvim, 2016, pp 51-53 (Tradução de Rui Pires Cabral).
.
.
.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016



             "  Pausa "


Parecia-me que este dia
sem ti
devia ser inquieto,
escuro. Em vez disso está repleto
de uma estranha doçura, que aumenta
com o passar das horas -
quase como a terra
após um aguaceiro,
que fica sozinha no silêncio a beber
a água caída
e pouco a pouco
nas veias mais profundas se sente
penetrada.

A alegria que ontem foi angústia,
tempestade -
regressa agora em rápidas
golfadas ao coração,
como um mar amansado:
à luz suave do sol reaparecido brilham,
inocentes dádivas,
as conchas que a onda
deixou sobre a praia.


   Pozzi, Antonia. Morte de uma estação. Lisboa: Averno, 2012, pp 85-87 (Tradução de Inês Dias).
.
.
.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016


     " Leve oferta "

Queria que a minha alma te fosse
ligeira
como as últimas folhas
dos choupos, que se incendeiam ao sol
sobre os ramos envoltos
de névoa -

Queria guiar-te com as minhas palavras
por uma alameda deserta, semeada
de ténues sombras -
até um vale de silêncio coberto de erva,
até ao lago -
onde vibra a cada sopro de ar
o canavial
e as libélulas brincam
em águas pouco profundas -

Queria que a minha alma te fosse
ligeira,
que a minha poesia te fosse uma ponte,
subtil e segura,
branca -
sobre a escura voragem
da terra.


 Pozzi, Antonia. Morte de uma estação. Lisboa: Averno, 2012, pp 81-83 (Tradução de Inês Dias).
.
.
.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016





     "Campos Cifrados"

Mesmo que esses pássaros do desejo
não nos queiram perdoar,
há que ter em mente a realidade
dos campos cifrados.

De nós mesmos, que se sabe?
De nós e das estrelas que caem,
do pó elementar dos sonhos
- que se sabe?


   Brasileiro, Antonio. Sem/título. Feira de Santana: Edições MAC Feira, 2016, p 45.
.
.
.
 " A cigarra e sua guitarrinha & a formiga e sua vidinha "

Uma vez uma Cigarra
tocava sua guitarrinha
pra nada.

Mas aí veio a Formiga,
que só trabalhava e mais
nada.

E disse: "Cigarra, oh
Cigarra, olha bem como isto
acaba"

E a Cigarra tocava
que tocava sua guitarra.

Mas veio o frio
inverno e a Cigarra
se viu

num inferno: que comer,
se não juntara nada?
E foi bater

na porta da Formiga,
a precavida. E então?
"Então

- lhe disse a For
miga-, tu não
cantavas?

Agora dança." E foi
pegar sua sanfona há anos
esquecida.

Oh,
coitada da Formiga, tão
enferrujada!

Tocava tão mal e tão
desajeitada.

Como é que se perde,
assim toda uma
   vida?


Brasileiro, António. Sem/ título. Feira de Santana: Edições MAC Feira, 2016, 51-52.
.
.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016



  "  La muerte de Dido  "

He cruzado el desierto.
Pero nunca pasó el tiempo en mi rostro,
porque aún conservo el tibio candor
de la belleza que alguna vez me prometieran.
Nadie entenderá mi muerte justo ahora
que he visto las ciudades más hermosas,
cómo se demoraba la luz en cada flor
que nacía en los palacios de Cartago.
Pero he cruzado el desierto,
y quien ve su propria imagen durante esa travesía,
aunque sea una noche, sabe que poco importa ya
que la arena pueda convertirse en tiempo
o en camino.

Cada día sé que tengo el mismo destino que esa tierra:
esparcirme en mil pedazos y no llegar a parte alguna.


  Vilar, Marta López. En las aguas de octubre. Madrid: Bartelby Editores, 2016, p 30.

          " Calipso "

Amaba las cosas que eran mías:
el silencio desnudo, salpicado de agua,
la piedra limpia donde crecían los dioses
y bajo los rios reposaba.
Nada era vencido por el tiempo
y nada era mayor que esa blancura.

Caminaba ciega por los valles,
amada por la tierra.
Recogía flores en desiertos de sombra,
con todo el fulgor de la alegría posado
en cada gesto.

No existia el principio ni el fin del vuelo de los pájaros.
Cruzaban el aire
en círculos de nieve, buscando la mañana.
Besé la claridad como bebía el agua más pura
de limpios manantiales.

Y casi te hice eterno.

Pero nunca pude adivinar
lo que la mano de la noche
estaba haciendo
- tan callada y lenta -
al fondo de esta luz,
a cada instante:
un eterno adiós de todo aquello tan hermoso
que fue mío y ya no estaba.


   Vilar, Marta López. En las aguas de octubre. Madrid: Bartleby Editores, 2016, pp 41-42.
.
.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016



       " Calipso "

Amava as coisas que eram minhas:
o silêncio desnudado, salpicado de água,
a pedra limpa onde cresciam os deuses
e no fundo dos rios repousava.
Nada o tempo vencia
e nada era maior do que essa brancura.

Caminhava cega pelos vales,
amada pela terra.
Colhia flores nos desertos de sombra,
com todo o fulgor da alegria pousado
em cada gesto.

O voo dos pássaros não tinha princípio nem fim.
Cruzavam o ar
em círculos de neve, procurando a madrugada.
Beijei a claridade como se bebesse a água mais pura
de límpidos mananciais.

E quase te fiz eterno.

Mas não podia adivinhar
o que a mão da noite
andava urdindo
- tão lenta e calada -
por baixo desta luz,
a cada instante:
um eterno adeus de tudo aquilo, que, formoso,
foi meu, mas já ali não estava.


  Vilar, Marta López. En las aguas de octubre. Madrid: Bartleby Editores, 2016, pp 41-42 ( Tradução: Victor Oliveira Mateus).
.
.
.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016



        " Vice - Versa "


Deixei há muitos anos de
ter medo do ridículo. Sorte
minha ter encontrado talvez
alguns alguéns que não acharam
muito ridículo o que eu dizia. Aliás
nada é mais ridículo do que tudo
que é muito humano: defecar
em fraldas nos primeiros tempos de
vida ( e muitas vezes nos últimos). Ter
de trabalhar para poder comer ou
vice-versa. As bodas nupciais e os
prováveis antónimos. Os exércitos as igrejas
os parlamentos e no final as nossas
necrópoles com pindéricos retratos
de esmalte apostos em tabuletas de
mármore igualmente pindéricas. E mesmo
a nova moda de derreter o morto até às cinzas
esse copianço hindu que em nós resulta
num morto mais portátil e mais fácil
de esquecer
é como todas as coisas humanas
ridícula.


   Lourenço, Inês. O Jogo das Comparações. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2016, p 44.
.
.
.

domingo, 4 de dezembro de 2016


        " Esta - Outras Vezes "

Em certas horas apetece
supor que o retorno existe. E que na próxima
vida iremos aos lugares a que não fomos
nesta: a um primitivo Ganges
à Lapónia mais distante às ilhas mais perdidas ao oceano
mais profundo ao vulcão mais feérico e fatal

E não podemos saber
se nesse tornar regressaremos tolhidos de algum
sentido, deturpadas vítimas ou escravos ou
pedintes de rua. Por isso vamos contando o decrescer
dos dias, nesta vez que nos cederam
sem garantias de regresso

Nenhuma divindade nos desvenda
o cessar do coração, a outra face
dos nomes que soam a eternidade
sempre tão distantes
do ruído do mundo.



       Lourenço, Inês. O Jogo das Comparações. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2016, p 23.
.
.

sábado, 3 de dezembro de 2016



          " saudade definida "


e o que é a saudade
senão um poço aberto no peito
de onde içamos água de sombra?


  Mancelos, João de. O teu Nome incendiado de Azul. Lisboa: Edições Colibri, 2016, p 62.
.
.
.

          " pássaro de cristal "


ainda que tenhas nascido escravo e filho de cativos,
ainda que da tua amada só restem cabelos no leito,
ainda que nenhum deus se tenha sacrificado por ti,

ainda que só conheças as pétalas apagadas de um verso,
ainda que a primeira noite de verão tenha sido a mais longa,
ainda que enterrasses teu pai, e a pá te pese como uma cruz,

ainda que tudo isto e o que ocultas tenha sido verdade,
não esqueças: algures, existe um pássaro de cristal
cantando mudamente para ti.


  Mancelos, João de. O teu Nome incendiado de Azul. Lisboa, Edições Colibri, 2016, p 36.
.
.
.