quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016



   O que é novo, na obra de Kant sobre a religião nos limites da razão, é que ele expõe uma compreensão do mal que consiste em que nos ponhamos na perspectiva do mal radical e este ponto de vista acrescenta algo ao conflito interior dualista experimentado pelo sujeito. Algo que muda a forma como esse conflito se manifesta e que resulta numa transformação global do próprio indivíduo. Este é um ponto fundamental que acompanha o que se desenvolve nas próximas linhas e acaba por reatar com os objectivos inicialmente enunciados neste ensaio, assim com a crítica à filosofia de Arendt e ao seu Eichmann.
   A experiência do mal radical, como já se referiu, conserva a estrutura básica da experiência do mal tout court, mas a mudança que se opera na relação entre as regras determina a acção boa ou má. Kant percebe com o seu incomparável génio filosófico que algo de natureza diferente resulta se na estrutura dual da experiência moral ocorrer uma inversão de domínio de um dos princípios sobre o outro. Na nossa experiência dual "normal", aquela que experimentamos ao longo de toda uma vida, é sempre o conflito entre a regra universal ou universalizante do bem (ser honesto, ser justo, encarar o outro como um fim e não como um meio, etc.) que subordina a outra motivação ou força negativa. Esta, precisamente porque possui uma realidade activa, pode com maior ou menor frequência prevalecer sobre a outra, e esse acontecimento, experimentado pelo sujeito como "mal", não abala a estrutura que mantém a regra do bem como dominante em princípio..
   É a partir daqui que outro ponto de vista é introduzido que transforma a própria qualidade do mal. A sugestão de Kant é que a regra do bem pode dar lugar ao domínio da regra do mal, ou seja o desvio causado pela motivação negativa deixa de ser algo que ocorre mais ou menos esporadicamente ou mais ou menos frequentemente ao longo da vida, mas o que tem lugar é a substituição de uma regra originalmente dominante (a regra do bem) por outra, a regra do mal. É esta substituição que precisamente muda a qualidade do mal para mal radical. Fica assim constituído um novo carácter, ou seja um outro indivíduo cuja prática do mal é a regra que determina a sua capacidade de escolha. Não que seja eliminada a presença, na consciência daquele que é capturado pelo mal radical, da regra do bem (...) mas porque apesar dessa presença, tão presente como a nossa própria sombra, a capacidade de escolha, o livre arbítrio (...) obedece ao que se experimenta como mal. Esta inapagável presença na consciência humana da regra do bem é absolutamente necessária para que se gere a experiência do mal radical: este não prescinde, pelo contrário, da presença do seu oposto, afirmando-se como grandeza negativa extrema e dominante. Neste sentido, como já vimos, Eichmann confessa ter sido assaltado por sentimentos de piedade em relação às vítimas, mas a regra que determinava o seu extermínio era dominante.


  Marques, António. A Filosofia e o Mal, Banalidade e Radicalidade do Mal de Hannah Arendt a Kant. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2015, pp 115 - 117.
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