quinta-feira, 28 de janeiro de 2016


Fundamental é perceber que essa radicalidade não se caracteriza pelo grau de monstruosidade do crime em si, mas sim por uma estrutura da consciência e um padrão de comportamento. Por outras palavras, a experiência do mal radical não corresponde necessariamente a comportamentos de desumanidade máxima (embora possa coincidir com esta, como no caso de Eichmann), mas designa antes uma experiência que afecta, na sua essência, a consciência moral. Este é o ponto central da nossa discordância com o pensamento de Arendt: a sua filosofia, que acaba numa teoria do juízo político que recorre a Kant, rejeita simultaneamente a existência do significado filosófico de uma consciência moral e do correspondente juízo. Mas sem o reconhecimento dessas figuras, é a própria vida, aquela vida que Arendt quis que renascesse plenamente como vita activa , que soçobra face às inúmeras máscaras com as quais nela inevitavelmente se manifesta... o mal. Quando tornarmos clara a experiência do mal radical, tornar-se-á também claro que a fórmula "banalidade do mal" não serve para qualificar os actos daquele homem de carne e osso com a sua história de vida, que dava pelo nome de Eichmann. Em consequência, a avaliação filosófica de Arendt deve considerar-se fundamentalmente errada.No entanto o seu caso é muito diferente dos autores atrás referidos. Arendt não desvia o seu olhar do acontecimento que obrigava a filosofia, o direito ou a política a repensar os seus fundamentos. O seu Eichmann é ( ou deveria ser ) o início dessa auto-reflexão para a filosofia da segunda metade do século XX. O que consideramos ter sido o seu erro é ter descartado a hipótese do mal radical, substituindo este pelo mal banal, operação que, como veremos, retira o problema da ordem da ética e o transfere totalmente para a ordem política.
(...) o mal, compreendido como mal radical, é uma estrutura da consciência e um padrão de comportamento que toma as mais diversas formas. É neste sentido que o mal, o radical e não aquele que Arendt descreve como "banal", invade a vida ética e a acção política, merecendo um lugar à parte na reflexão filosófica.

Marques, António. A Filosofia e o Mal, Banalidade e Radicalidade do Mal de Hanna Arendt a Kant. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2015, pp 16 - 17.
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