domingo, 6 de dezembro de 2015

(Este texto foi lido pelos seus relatores no passado dia 4 de dezembro de 2015 aquando da entrega dos Prémios Literários do PEN Clube de 2014, numa cerimónia - no Auditório Carlos Paredes da S.P.A. - presidida pela Sra. Secretária de Estado da Cultura, pelo Presidente da Sociedade Portuguesa de Autores e pela Presidente do PEN Clube Português. O texto fundamenta a atribuição do Prémio PEN de Poesia por um júri a que os relatores pertenceram.)
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                          Prémio P.E.N. de Poesia para obras pulicadas em 2014

                       Sociedade Portuguesa de Autores, 4 de Dezembro de 2015
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O Júri constituído por Victor Oliveira Mateus (Presidente), Casimiro de Brito e Paula Mendes Coelho decidiu, por unanimidade, atribuir ex-aequo, o Prémio PEN 2014 de Poesia às obras O Vidro, de Luis Quintais (Assírio & Alvim) e a O Tempo é Renda, de Isabel Mendes Ferreira (Labirinto de Letras).
Trata-se de duas obras, que não obstante as diferenças óbvias existentes entre elas, se apresentam com uma forte originalidade no panorama geral da poesia portuguesa contemporânea, privilegiando acima de tudo o fazer poético, o trabalho sobre a linguagem, sem os quais a poesia não existe.
Em ambos os casos se trata de leitores cultos, que ousam entender a escrita poética como um combate, como um “campo de batalha”.
I
Ainda que Quintais tenha confessado recentemente que O Vidro resultou sobretudo de um processo inconsciente, intuitivo, enigmático, e que esse foi o seu “Dia triunfal”, bem sabemos que tal como no caso de Pessoa, tudo se passa de maneira algo diferente. Muitos outros dias de angústia e trabalho árduo, de combate com a palavra estão provavelmente na origem deste texto, que constitui uma longa revisitação ao passado, ou antes uma curiosa “entrevista”, levada a cabo por um sujeito poético arquivista, colecionador, anotador de fragmentos, tal como o trapeiro de Baudelaire, pretexto aqui para um diagnóstico lapidar dos tempos em que vivemos e que deixa o leitor sem fôlego, e sempre em alerta. A violência, a guerra, as metrópoles do asfalto e da solidão e um tempo fundamentalmente técnico que Baudelaire já tinha magistralmente intuído, de onde o afecto e o humano foram banidos, tudo isso surge numa forma condensada, intensa, dada a mestria com que sugere, mais do que diz, veiculando uma dimensão política, que nos apraz aqui sublinhar.
Apenas um exemplo da coerência e do apuramento da poética de Quintais. Se, em Depois da Música (editado em 2013), havia uma alusão bem explícita ao holocausto, por exemplo em poemas como “Noite e Nevoeiro”, aqui, nesta obra, surge apenas a alusão, a sugestão dessa atrocidade maior, agora fatalmente e
sub-repticiamente incorporada e podendo pairar sobre o tempo presente, no que pode ser visto celaniamente como uma “escrita do não escrevível”:
“[…]De estilhaços/ é a voz de vidro e o céu deglutido, esventrado,//como a rede rota que faz precipitar a história/e engole a cidade em som e fúria e lamento//e regresso: o caminho invertido das chaminés/onde o fumo se transforma em corpos//e os corpos saem dos fornos/e começam a andar de novo na estranha terra//e dos campos saem depois serenamente.” (p. 21-22)

Este longo poema “Vidro” vai ainda articular-se de maneira exímia com uma segunda parte intitulada “Ecolalia”, que tal como este título sugere, constitui um eco dos principais topoï da primeira, desta feita num conjunto de 21 pequenos textos em prosa poética, numa nova reconfiguração de experiências dolorosas presentes em filigrana na primeira parte.
De facto, se anteriormente a poesia de Quintais ainda conseguia riscar “a palavra DOR no quadro negro”, nesta última obra ela prova não ser capaz de apagar, de eliminar essa dor. A “imprecisa melancolia” (título da primeira obra de 1995) transformou-se em “negro sol”. Com efeito, o olhar melancólico e alegórico do poeta flâneur, do trapeiro baudelairiano é aqui levado às últimas consequências, restando-lhe apenas recompor os estilhaços que sabe desprovidos de significado, teimando em reconfigurá-los na esperança de algo novo, de algum consolo que todavia sabe não existir, muito menos quando o sujeito poético se imagina a responder a um filho:
“E ao teu filho?//Dir-lhe-ás que não há alma,/que um sopro suportando a coerente//carne sobre as suas espáduas/é maligno subterfúgio?”(pp.37-38)

II
Entre poesia e prosa, a escrita torrencial de Isabel Mendes Ferreira desafia a capacidade perceptiva do leitor, confunde deliberadamente a intelecção sempre tão ávida de linearidade e de um sentido a dar-se sem pejo nem véus, joga - através de um cultismo denso e de um sincretismo temático - com a propagada necessidade de univocidade e/ou de inteligibilidade imediata. A poeta retoma assim a ideia, tão cara à modernidade, de tecedura poética e, a partir daí, ensaia uma arquitectura singular e heterodoxa, pelo que não hesita em deitar mão a todo o tipo de recursos estilísticos: assonâncias e exercícios de paronímia (Cf. p 52: arrasta/ arrasa); repetição de palavras (Cf. p 170: fiz-me inóspito. fiz-me
medo); expressões rondando o jargão (Cf. p. 110: fumo de fio a pavio), contrastando muitas vezes com um registo fortemente erudito…. Aliás, não é por acidente que o título desta obra refere a imagem da renda, e essa urdidura não é apenas formal, ela remete igualmente para um trabalho da memória, simultaneamente labiríntico e aracniano, onde os temas se aprofundam, se abandonam - muitas vezes abruptamente - e se retomam como um rendilhado feito no tempo e a partir do tempo. Renda e não rede, que envolve… sem aprisionar. O tempo é, portanto, o solo matricial desta poesia, assim como o aro que emoldura toda escrita poética: "e o tempo é uma variável que não dominamos. não dominaremos nunca. como se viajássemos numa pequena barca por mar/ encapelado. umas vezes somos salvos e outras/ engolidos pelas águas."  (p.114). O tempo, ora na sua dimensão salvífica, ora como abismo destruidor, é o território onde a existência se abre - e neste ponto é impossível não nos recordarmos de algumas das principais teses de Heidegger! - como forma de “ser-para-a-morte”, provocando no sujeito poético momentos de alegria serena e - muitas vezes também - de uma angústia desintegradora: "O tempo é renda no ventre plano da saudade/ não espero nada. sou assim como a desintegração. evento/ cardume película e animal de infância " (p. 107).
Ciente de que é da “casa dos afectos que a palavra chega”, trata-se nesta escrita de “cantar os signos”, num texto sempre aberto “profano e sagrado; profundo e raso”, e de “recolher os despojos. como quem desmente o texto e a voz num deserto que já foi corpo antigo e agitação de falcões inquietos.” (p.60)
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Lisboa, 4 de Dezembro de 2015
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Relatores:
Paula Mendes Coelho
Victor Oliveira Mateus
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