terça-feira, 10 de novembro de 2015

       ACTO 3, CENA 6

(...)
RODRIGO

O que recebestes de Deus, meu Senhor, todo este vasto império:
terdes recebido a custódia dos homens faz de vós
rei e imperador, mas perante Deus sois, como nós, um homem.
Também vós sofreis como homem mortal, também amais
e desejais! Mas com quem partilhareis a vossa humanidade?
Se rebaixais os outros homens a instrumentos da vossa vontade,
como fruíreis (homem que sois!) daquela harmonia
- tão humana porque divina! - que soa apenas
quando todos se juntam no desejo de sentirem
como se em vez de muitos fossem um só?

FILIPE (para si)

Meu Deus, ele toca-me a alma...

RODRIGO

Senhor, cheguei há pouco da Flandres e de Brabante,
Províncias florescentes do vosso império!
Grande e honroso povo - povo cheio de valor
e de bondade, povo que em vós põe os olhos
como num pai. Pensei em vós, na missão divina
que vos é outorgada pelo governo de um tal povo.
Mas depois olhei à minha volta: vi cadáveres,
homens e mulheres queimados em autos-de-fé;
vi enforcamentos na praça pública, sangue, morte, destruição.
Onde podia haver paz, há só ódio, conflito, tumulto.

FILIPE (defensivo)

Olhai, no entanto, para a Espanha, Marquês.
Aqui floresce a paz como nunca outrora
no passado. É a mesma paz que quero para a Flandres.

RODRIGO (exaltado)

Paz? Chamais a isso paz? A paz de um cemitério!

(...)

FELIPE (calmo)
(...)
por isso vos digo, pela estima que fizestes nascer em mim:
acautelai-vos e tende prudência,
para que vos não vejais enredado
nas malhas da Santa Inquisição.


   Schiller, Friedrich. Don Carlos. Lisboa: Edições Cotovia, 2008, 121 - 124. (recriação poética de Frederico Lourenço).
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