sábado, 3 de outubro de 2015


                      Apresentação do livro Efeitos de Captura de Luís Filipe Sarmento


   O presente livro de Luís Filipe Sarmento, Efeitos de Captura, apresenta-se-nos simultaneamente como um olhar analítico-crítico sobre o hoje e como um itinerário de cariz normativo, onde predominam dados aspetos salvíficos e iniciáticos. Assim, o poeta cinde a sua obra em três partes distintas que são, não só territórios devidamente caracterizados, mas também etapas hierarquizadas: abysmo, superfície, raro.
   Relativamente ao abysmo são-nos apresentadas as múltiplas falhas e imprecisões quanto aos efeitos de captura que ocorrem neste território: a apreensão sensorial e a nomeação estão indissoluvelmente ligadas a uma malsã forma de estar no mundo (1,1). Este abysmo prolonga-se também pela matéria textual adentro, fazendo-a desembocar no campo do mistério: "o texto consiste-se/ no labirinto de si/ em busca do Minotauro/ que ali não reside." (1,3). A memória, quer entendida numa perspetiva psicologista quer como veículo oculto-paranormal, tem nesta obra uma função importante, no entanto, ela funciona como um buraco negro onde a lucidez da perda se dá a cada instante, ou seja, na memória a captura está inexoravelmente ligada à erosão e ao esquecimento (1,5), por conseguinte, aquilo que no abysmo vamos capturando estará sempre marcado por um labor incessante, sempre incompleto e onde muito do que se processa acabará esfumando-se. Os movimentos de captura no abysmo alargam-se depois a múltiplas instâncias: o corpo (1,9), os objetos estéticos (1,7) e o Outro (1,6), é exatamente neste último poema que nos é dito que os órgãos sensoriais (os olhos) têm acesso às imagens que lhes são apresentadas, bem como àquelas outras que a vontade ou a convivênvia insistem em manter ocultas. Parece, pois, que a capacidade de aceder ao oculto é intrínseca ao humano, embora nem todos acedam a esse talento. Esta tese de que o não explícito pode abrir-se ao ver - sobretudo na arte -, ganha foros de cidadania no poema 15 da primeira parte da obra.
   Este poemário, como dissemos acima, apresenta-se também como um roteiro, no entanto, não messiânico no sentido da espera de uma entidade transcendente, mas de uma redenção pessoal (e também coletiva?) através de uma desocultação do escondido, que seja não só uma captura do que liberta, mas também o vivenciar desse desocultado. Portanto - e porque estamos perante propostas metafísicas e também ético-morais -, o princípio do ser, assim como o dos entes, é sair do abysmo, ultrapassar a superfície e alcançar o raro:

  ...          ...        ....            ...
A luz da superfície
nada esclarece:
intimida pelo que esconde
ao homem que se evade
do abismo fracturado
por revoltas.
O princípio do ser
é sair.
Estímulo perpétuo
da busca que retrata
uma civilização esmagada
que se tornou desejo.

                ( 1,31)


   A distinção entre o abysmo e a superfície não é uma distinção de essência, mas de gradação e de abertura na possibilidade de libertação, isto é dito nos poemas pelas variáveis que refere indistintamente num e noutro território: "(...) um poder que derrotou/ as democracias,/ esmagando-as no lodoso/ abismo dos mercados/ virulentos./ Ainda assim não será/ o fim da história." (1,32). Repare-se no último verso: a história não se finará com qualquer situação abissal - e abismal -, daí o poeta insistir: " o rebelde em fuga/ eleva o alçapão/ de acesso à superfície/ e, cego, abalança-se/ sobre o solo queimado/ de um mundo devastado(...)/ o último reduto da crença do homem planetário,/ renovado fenómeno/ de um novo equilíbio/ universal" (1,33). Vemos, pois, que apesar dos escombros, dos destroços vividos como verdadeira realidade, o homem/rebelde pode - e deve - ultrapassar essa iníqua e fraudulenta realidade para alcançar uma outra, que ele sonha, fantasia, mas também intui como possível - apesar de oculta -, já que de sua existência e sentido lobriga os sinais no marasmo do pântano.
   A segunda parte deste livro acentua a caracterização de todos os poderes maléficos que urge ultrapassar, mas coloca, de modo insofismável, a necessidade de ultrapassar o que aparece e, ao mesmo tempo, desnuda corajosamente a sua noção do mal. Aliás, Luís Filipe Sarmento torna indissociáveis estas três variáveis (necessidade de ultrapassar o aqui e agora/ o mal/ a busca do perdido e ocultado):

A primeira luz é nervosa
nesta fuga ao ventre-catástrofe.
...      ...         ...
E se Trimegisto tinha razão -
se tudo o que está em baixo
é como o que está em cima -
a evasão ao medo
será um confronto histórico
com os sequazes do dinheiro.
Não é uma luta divina
com a nova ordem mundial:
será o corpo a corpo
com a sobrevivência
em busca do berço perdido.                

                 (2,1)

Atente-se à referência a Trimegisto, que coloca esta poesia fora da linha predominante na tradição poética e filosófica ocidental, mas não deixa de tangenciar teses e procedimentos de alguns autores dessa tradição - mais pelas vivências do que pelos pressupostos, autores como Hildegarda de Bingen e Jacob Boheme.
     Quanto ao mal que se desmascara afrontosamente na superfície , ele não aparece aqui como uma essencial ausência do bem, tal como pensava Agostinho de Hipona, não é também uma realidade banal que dado contexto histórico-político pode instaurar limitando assim a responsabilidade individual tal como defendia Hanna Arendt, na superfície o conceito de mal aproxima-se - algo paradoxalmente - das teses de autores ateus como Sartre, já que o exercício desse mesmo mal implica necessariamente a escolha livre dos sujeitos, isto é, uma opção voluntária que implicará a responsabilidade do indivíduo, ou dos grupos sociais, que encetem o caminho desse mesmo mal, assim, este último é, ao nível da superfície, uma noção - e uma práxis - que contradita o dever e a própria humanidade do homem, por conseguinte, o mal é, neste livro de Luís Filipe Sarmento, e numa terminologia kantiana, radical. Concluímos, portanto, que esta obra articula, de modo exemplar, todo um itinerário de cariz ocultista com abordagens teóricas da tradição ocidental, que o poeta colhe, trabalha e integra na sua voz poética e na cosmovisão de que nos fala. Este mal é, então, "o grande ecrã/ da superfície. As câmaras/ digitais controlam os gestos,/ os detectores de emoções/ as agitações do homem em fuga." (2,2); "Deuses vulgares, sinistrados/ das hecatombes que os livros sagrados/ não conseguiram prever," (2,8); "À superfície erguem-se os templos capitalistas/ onde poucos entram prostrando-se diante dos seus deuses,/ e muitos pagam promessas falsas,/ miseravelmente escorraçados das suas habitações." (2,10)
     Perante esta superfície, que tem uma linguagem própria (Cf. 2,3) e cuja percepção é uma burla dos sentidos, perante ela só uma atitude é possível e necessária: "A arma pacífica do Não/ poderá organizar a resistência/ em defesa da História, da mudança/ e do Novo como estandarte/ do homem criador." Esta rutura, esta recusa, está intimamente associada à Obra, à arte: "Olhar-te é uma ficção/ à espera de um livro novo" (2,14); "Um poeta/ tenta capturar sensações/ do que já não há" (2,24); "(...) A literatura oficiosa/ promove detetive/ a ministro da nova ignorância" (2,26). Esta superfície é ainda esquadrinhada pelo olhar lúcido e crítico do poeta, não só quanto à sua atualidade (vejam-se as referências à Alemanha, aos países do sul, à subversão da democracia, etc.), mas também no que diz respeito ao já perdido e que urge recuperar: a integração plena e redentora no Um (Cf. 2,14), aqui a fazer-nos lembrar certos monismos nomeadamente a filosofia de Plotino. Aliás, convém referir aqui a relação que por vezes surge, ao longo da história, entre certos hermetismos e os neoplatónicos.
     Finalmente, Luís Filipe Sarmento propõe-nos neste poemário, na sua terceira parte, a passsagem "Da superfície comum/ ao território do raro" (2,33). Este raro "dissolve a ideia/do sempre banal" (3,3), "não programa nem dissimula/ o que ao olhar/ é metáfora de prodígio" (3,5). Há, no raro, um privilegiar do individual - sobretudo enquanto percurso a fazer -, da recusa da massa,  do instante e do despojamento absoluto: "Raro é atingir a plenitude do nada/ com a sensação estética de ter tudo ao seu dispor./ Neste universo, o firmamento será sempre um mistério/ que regulará a crença do homem em si/ se essa possibilidade não for conspurcada por falsos sábios." (3,17).
     Há, e para finalizar, neste itinerário proposto, um enfatizar da imaginação e da descodificação, mesmo suspeitando que a fonte originária permanecerá sempre um mistério, assim, mesmo ante esse alvo sempre a retomar, os efeitos da sua captura, geminados com a liberdade de quem procura (Cf. 3,33), não invalidam as etapas e a energia daquele que se entrega ao caminho.
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Café Império - Lisboa, 3 de outubro de 2015.
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