terça-feira, 1 de setembro de 2015



   Se eu hoje pintasse e não escrevesse ( a literatura parece-me uma arte muito menos simbólica que a pintura), como representaria esta espécie de nebulosas mentais em que mais ou menos vivemos? Estas ilusões que as coisas nos dão? E o modo também como retemos e vamos vendo reflectir-se e repetir-se o que uma vez nos impressionou?
   Que poder do espírito é este que conserva umas impressões e elimina outras? E que as conserva sob formas que não são puramente sensoriais nem raciocinadas? À roda de uma simples impressão, que mantém geralmente o seu carácter genuíno e inédito, que ramos de novas imagens se não vão formando sempre!
   Muitas vezes julgo que não é falando nem escrevendo que nós melhor revelamos certos estados do nosso espírito, ou as suas visões. Parece-me que a linguagem se inclina abusivamente para a lógica e para a justificação. Que a falar nos recompomos e nos enfeitamos demais... Em suma, pintadas, tornadas plásticas, talvez que as nossas impressões e memórias resultassem mais sóbrias e mais nítidas que descritas.
(...) Na descrição nós rodeamo-nos de todos os elementos de composição que podemos, chocamos o assunto e damos-lhe o máximo de extensão - fugindo, quiçá, ao que lhe é essencial... Na pintura é possível que assim não seja.


  Lisboa, Irene. Obras de Irene Lisboa, Volume III - Começa uma vida. Lisboa: Editorial Presença, 1993, pp 42 - 43.
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