sexta-feira, 7 de agosto de 2015



  "  A Carta  "


Senhores:
hão-de a dor e a ausência ter sabor,
um certo cheiro doce e demorado,
em forma de mil olhos


Pois vós olhastes essa minha ausência,
dissestes que dali criei palavras,
mas não por minha mão


Na vossa história, senhores,
eu fui só voz,
em vez de gente inteira


Inteira, nunca o fui,
dobrada ao meio pelo escuro das vestes,
pelas juras forçadas que cumpri,
pelo dever que me ditou meu pai


Porém, fui eu que as fiz, às letras dessas cartas,
eu, que as fui construindo devagar,
nas escuridão da cela


O resto foi roubado por vós
e noutra língua,
e em mitos que vos eram
necessários


Não fui só voz:
fui eu, dona de mim, porque as letras me foram, e o amor,
e o ódio vagaroso


Só para isso me valeu viver,
para compor, igual a sinfonia,
tudo o que considerei


Ele foi só palavras que em palavras forjei,
bigorna onde moldei espadas e lanças,
o lume necessário


Só não moldei
as grades da prisão onde vivi:
essas, moldastes vós
até incandescência


Mas eu, nas letras que compus,
eu inventei a ausência como mais ninguém.
Eu fui a mão da ausência
numa cela escura


E os actos dele foram-me as metáforas,
imagens a seguir-me, mais fortes
do que a vida.
Por isso me chamastes, senhores,
no vosso tempo, uma palavra nova e ágil:
literatura


E assim eu fui-vos voz,
e doce mito. E nada mais
vos fui


Quero dizer-vos hoje,
neste tempo tão escuro,
mas de um escuro diverso do que tive:
adeus


Deixai-me o escuro, o meu.
Porque ao lado da minha,
a vossa ausência, essa que em mim plantastes,
nada é.
Tomáreis vós saber o que é ausência


Ausência: eu: demorada nestas linhas.
Dizer com quanto escuro
a noite se desfaz
e se constrói -




  Amaral, Ana Luísa. Escuro. Porto: Assírio & Alvim, 2014, pp 52 - 54.
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