quarta-feira, 29 de abril de 2015



V.
  
   Hoje é o dia das catástrofes assumidas. Do infortúnio a germinar como árvore de frutos nodosos e secos. É o negro dia dos sem remédio, de todos quantos se arrastam sem caminho nem valimento e que depois, ávidos de fim, se encostam às paredes mais obscuras na gorada espera de qualquer passagem. É o tempo das escritas sem entranhas, do tropel das imagens a encavalitarem-se umas nas outras na encenação de um dentro que nunca tiveram, para que seus parlamentares e escribas, de camisa preta e facho na mão, possam finalmente imitar as marchas de 39 pelas ruas de Roma. Hoje é o dia das catástrofes assumidas, das fronteiras delimitadas com um giz preto feito com as cinzas de Birkenau, para que o topo seja mais topo na ilusão de um chapéu de três bicos, de um azorrague bem untado ou de uma fileira de prateleiras e tronos para o assentamento dos camisas pretas na sua pose de casacos coçados e com o dedo grande dos pés a escapar-se dos sapatos cambados e sem protetores. Hoje é o dia dos que espreitam prontos a avançar e daqueles que avançam, mas, sem espreitar, lhes vão assim abrindo o caminho. Este é o dia em que não entro, o dia de uma negritude que recuso, enquanto os olhos me fogem pelo tampo branco da mesa na invenção de um outro tempo resplandecente e de uma outra qualquer cidade que não me tenha por vendilhão nem cúmplice.

   Mateus, Victor Oliveira. Negro Marfim. Fafe: Editora Labirinto, 2015, p 16 ( Prefácio: Miguel Real;  Inventário de Inquietações: Texto de Ronaldo Cagiano).
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