quarta-feira, 15 de outubro de 2014






     Não será assim que a ideologia funciona? O texto ou a prática ideológicos explícitos são sustentados por uma série não tocada de suplementos superegóicos obscenos. Sob o socialismo realmente existente, a ideologia explícita da democracia socialista era sustentada por um conjunto de injunções e proibições obscenas implícitas e não ditas que diziam ao sujeito como não levar a sério certas normas explícitas e como observar um conjunto de proibições não reconhecidas publicamente. Uma das estratégias da dissidência durante os últimos anos do socialismo foi portanto precisamente tomar a ideologia dominante mais a sério e em termos mais literais do que se tomava a si própria, ignorando a sua sombra virtual e não-escrita: "Querem que pratiquemos a democracia socialista? Muito bem, aqui está, então!" E quando se recebiam dos apparatchiks do partido sinais desesperados indicando que não era assim que as coisas funcionavam, bastava ignorá-los e persistir. Eis o que significa o acheronta movebo como prática da crítica da ideologia: não mudar directamente o texto explícito da lei, mas, antes, intervir sobre o seu suplemento virtual obsceno.
     Lembremo-nos do modo de operar da relação com a homossexualidade numa comunidade militar. Há dois níveis claramente distintos: a homossexualidade explícita é brutalmente atacada, os soldados identificados como gays são votados ao ostracismo, espancados todas as noites, etc. Todavia, esta homofobia explícita é acompanhada por uma rede implícita de alusões homossexuais subentendidas, de piadas e práticas obscenas. Uma intervenção verdadeiramente radical sobre a homofobia militar não deveria centrar-se fundamentalmente portanto na repressão explícita da homossexualidade, mas antes "mover o subsolo", atacar as práticas homossexuais implícitas que sustentam a homofobia explícita.
     É este nível subterrâneo obsceno que nos permite abordarmos o fenómeno Abu Ghraib em novos termos (...). O aspecto principal e mais vivamente visível é o do contraste entre as formas "típicas" de torturar os prisioneiros usadas, por um lado, pelo regime de Sadam e, por outro, pelas tropas americanas. Sob o regime de Sadam, predominava a dor brutal e directamente infligida. Os soldados americanos privilegiavam a humilhação psicológica. Documentar a humilhação com uma câmara, com os autores da tortura, sorrindo estupidamente, presentes no filme, ao lado dos corpos nus e contorcidos dos seus prisioneiros (...). Quando vi a fotografia bem conhecida de um prisioneiro nu com um capuz negro a esconder-lhe a cabeça, com cabos eléctricos a prenderem-lhe os membros (...) a minha primeira reacção foi pensar que se tratava de uma ilustração  de espectáculo artístico, da última performance exibida em Manhattan (...).
     É este aspecto que nos conduz ao núcleo da questão: aos olhos de qualquer pessoa familiarizada com a realidade do modo de vida americano, as fotografias evocavam imediatamente o reverso obsceno da cultura popular dos EUA (...) onde o ritual da iniciação conhece excessos e os soldados ou os estudantes são forçados a adoptar posturas humilhantes ou a praticar actos infamantes, como enfiar o gargalo de uma garrafa de cerveja no ânus ou espetarem-se com agulhas enquanto os seus companheiros assistem à cena. (...) Evidentemente, a diferença mais clara é que, no caso destes rituais de iniciação (...) as provas são sofridas em resultado de uma livre escolha, sabendo perfeitamente o sujeito o que o espera e tendo inteira consciência da recompensa final: ser admitido no novo círculo (...). No caso de Abu Ghraib, os rituais não eram um preço que os prisioneiros tivessem de pagar a fim de serem admitidos como "um de nós", mas pelo contrário eram justamente a marca da sua exclusão.  (...) Por fim, há uma última mensagem cínica na aplicação aos prisioneiros árabes de um ritual de iniciação americano: "Queres ser um de nós? Muito bem, aqui tens uma amostra do verdadeiro sabor do nosso modo de vida..."




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.Slavoj Žižek. Violência. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2009, pp 149 - 151.
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