segunda-feira, 28 de julho de 2014




 As três primeiras estrofes do poema " Blasfémias, Maldições sobre o Princípio "


Os pássaros inquietam a luz, demoram as asas
no crepúsculo: grãos de humidade brilham
nos seus desmesurados olhos, nos lamentos
cerimoniosos dos ramos onde as patas
inscrevem uma insonora, sitiada partitura

basta que haja água, um pouco de brisa, areia, apenas
o esplendor da mágoa, uma nocturna galeria
de leis e conjecturas, presságios de uma outra
voz, a tentação rugosa de uma mão removendo
a fenda dos lamentos, a imperfeição da ironia,
o luxuoso sussurro de deus

blasfémias, maldições sobre o princípio
e o erro, os trabalhos e o crime, os dias
e os lugares, a sorte redimindo
a nefasta boca, as intumescentes paixões;
do fundo do tempo vem essa voz, as soturnas
claridades derramando as suas embriagadas cores, os venenos,
a febre intensa, o justo elemento da inocência,
a extrema costura que aproxima as palavras, o aguaceiro
das sombras que contemplamos em sossego - contaminamos os secos caules da serenidade, a obscura
semelhança das moradas, memórias que escurecem mais na excessiva luz ramificante,
é espessa a matéria do silêncio por lâmpadas iluminada, abundante cegueira
expõe o fascinante rosto, um batimento de melancolia, um epistolário de álcool,
uma tábua de imobilidade e dispersão, a exacta certeza de um quase nada
de um poema
...         ...         ...          ...            ...          ...          ...        ...


   Velhote, Jorge. Narrativa da Foz do Douro. S. Mamede Infesta (Casa Museu Abel Salazar): Edição Projecto (Ideias à Volta do Espaço), 2013.
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