sexta-feira, 27 de junho de 2014



Homenagem a Glória de Sant'Anna na Fundação José Saramago a 27/6/2014: Gisela Ramos Rosa, Andrea Paes, Daniel Maia Gonçalves, Inez Andrade Paes e Victor Oliveira Mateus.
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A fulguração do instante como fundamento da serenidade


na poesia de Glória de Sant’Anna


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          A arte poética de Glória de Sant’Anna funda-se numa cuidadosa e atenta auscultação do real que a cerca e daquele que dentro de si ressuma. Sem adentrar-se nas fórmulas canónicas do realismo, são, contudo, os instantes manifestados pelo real – entendido este como mundo natural ou como mundo vivido e relembrado – que a despertam, maravilham e, muitas vezes, magoam: “As acácias guardam nas tímidas folhas / franjadas e límpidas / a doce ternura / da ausente cacimba.” (Livro de Água, 1961, in “Amaranto”, 1988, p 65), “Tanto oiro na tarde / escorrendo do poente // as silhuetas das árvores / são fímbrias de poemas” (In Algures no tempo, 2005, p 21), “quem bateu à minha porta / limpou os pés / deixou os sapatos / e foi-se embora” (In Trinado para a noite que avança, 2009, p 33). Os instantes apreendidos pela poeta apresentam-se geralmente na sua dimensão pictural quer pela beleza das formas, quer pelo exotismo do cenário, quer ainda pela transposição para o poema de dadas ambiências climáticas e temporais: “Por cima dos claros, transparentes búzios / e das lentas algas, / a negra desfia seus tranquilos passos” (Livro de Água, 1961, in “Amaranto”, 1988, p.63), “ O azul recente da manhã/ insinua-se/ pelo silêncio das plantas indefesas.// As casuarinas longamente/ hesitam/ entre o apelo do sol e os finos dedos// da brisa quase inútil.” ( Um denso azul silêncio, 1965, in “Amaranto”, 1988, p 135), "Dentro da madrugada clara / o vento é de vidro e a lua é de água, / e por entre as arestas das casas / o mar se alonga e arfa.” (Livro de Água, 1961, in “Amaranto”,1988, p 71).
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De entre a multiplicidade de instantes vibráteis que assolam o imaginário poético de Glória de Sant’Anna encontramos igualmente motivos fortemente marcados pelo humano nas suas diversas facetas: o socioeconómico – “O menino é nu, / e alegre e claro: / veste-se da sombra / das árvores altas”. (Livro de Água, 1961, in “Amaranto”, 1988  , p.94), “ O pescador anda ao largo/ todo perdido do mundo/ - repartido entre o horizonte/ e o azul fundo.(…)// (Vai o destino passando/ ao mesmo tempo/ pelo pescador, pela rede,/ pelo mar e pelo vento).” ( Um denso azul silêncio, 1965, in “Amaranto”, 1988, p 138); o ético e moral – “O negrinho é morto / na noite densa. / (…) / de tão sozinho / de tão ausente, / quem o redime é o tempo.” (Poemas do tempo agreste, 1964, in “Amaranto”,1988, p 99); o urbano – “esguio parecendo / saído das pedrinhas dos degraus / entre um coração de vidro / e ferro duro moldado” (“O elevador de Stª Justa”, in E nas mãos algumas flores, 2007, p 21), “rua sofisticada dos artistas / e das horas românticas // agora os destroços calcinados / são sua vizinhança” (“Rua Garrett”, in E nas mãos algumas flores, p 18; é interessante notar aqui a impressão que o enorme e violento incêndio do Chiado teve, à época, no olhar da poeta); a guerra colonial –




                “Poema Décimo Primeiro”


 


 


 


A negra tombou entre os agrestes ramos


e um súbito espanto.


 


(está morta


e as aves cantam)


 


Do seu ventre aberto ao sol que se inclina


esvai-se o longo fio que a tecia.


 


(está morta


e o vento desliza)


 


Da face suspensa na folhagem magoada


descai o lenço que se desata.


 


(está morta


sob a claridade)


 


…toda já outra sobre o trilho que seguia


ausente das marcas de ódio que pisava


guarda entre os dedos longos da mão abandonada


sinais do áspero matope que a recolherá.


 


(está morta e as aves cantam


e a tarde se consome toda igual)


 


(Cancioneiro incompleto, temas da guerra em Moçambique, 1961-1971, in “Amaranto”, 1988, p.175)


 
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O tema da guerra colonial, na poesia da Glória de Sant’Anna, não pode ser desinserido de todo um ideário ético que trespassa a sua poesia, ideário esse que nos diz que ante o repulsivo de cultivarmos em nós uma qualquer espécie de infra humanidade, que frente ao que de aviltante tem a morte premeditada do Outro e que frente à horrenda injustiça que é privarmos esse Outro do seu direito inquestionável de estar vivo com dignidade e raízes, frente a tal território essencial nenhuma pele tem cor. Apesar da angústia, da nostalgia e dos vários momentos de profunda solidão interior que encontramos nesta poesia, Glória de Sant’Anna – e relativamente ao tema de que falamos, bem como ao livro que acabámos de referir – jamais abre mão, nem da sua solidariedade com o humano nem dessa sacralidade que é o estarmos vivos, independentemente de condicionalismos puramente acidentais, acerca disto leiam-se, por exemplo, os poemas: Sétimo, Nono e Décimo Terceiro do livro Cancioneiro incompleto.
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      Finalmente, e de entre os instantes vibráreis e fulgurantes, ressalvemos o mundo dos afectos do qual podemos destacar, por exemplo, a amizade, veja-se o poema dedicado a Sebastião Alba – “bateu ao portão um dia / bateu ao portão / abri-o // vinha da estrela do norte / bebendo copos de vinho” (“Cantiga de amigo” in Algures no Tempo, 2005, p 16), e ainda o poema dedicado a José Craveirinha – “a areia morna / sorve os teus passos // e a tua fala / contida / retida nos olhos largos” (“Musicando arrabil” in Algures no tempo, 2005, p 27). Convém ainda enfatizar que estes instantes fulgor que acicatam todo um pensar de imagens de que Glória de Sant’Anna se serve na sua arte poética pode assumir duas variantes distintas e, por vezes, autónomas: ou cada estrofe é ela um agora fulgurante e descentrado na organização do poema, ou cada estrofe complementa todas as outras dando azo a que o instante seja agora a própria unidade poemática, como exemplo desta segunda faceta podemos citar o poema “Maternidade” incluído em “Um denso azul silêncio” (1965), poema este que, para além de ilustrar o que acabamos de dizer, dá uma amostra clara da posição da poeta relativamente à problemática da diferenciação étnica:
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          Olho-te: és negra.


          Olhas-me: sou branca.


          Mas sorrimos as duas


          na tarde que se adeanta.


 


        Tu sabes e eu sei:


        o que ergue altivamente o meu vestido


        e o que soergue a tua capulana,


        é a mesma carga humana


 


        Quando soar a hora


        determinada, crua, dolorosa


        de conceder ao mundo, o mistério da vida,


 


        seremos tão iguais, tão verdadeiras,


        tão míseras, tão fortes


        E tão perto da morte…


 


        (…)


 


         Ambas estamos certas


         - tu, negra e eu, branca –


         que é dentro dos nossos ventres


         que germina a esperança.


 


 


     A toda esta multiplicidade de estímulos que se impõem ao ver, à escuta e à interioridade perscrutadora da poeta soma-se o percurso existencial de Glória de Sant’Anna ela-própria, périplo cujas etapas, esperanças e desilusões Eugénio Lisboa tão bem expôs, com o rigor e a acutilância que todos lhe reconhecemos, no Prefácio de “Amaranto”. Ao que, por conseguinte, e como ponto de partida de toda uma poética, nos poderia aparecer como uma súmula de fulgurações visando o absurdo ou o arbitrário, ou ainda que este mesmo ponto de partida poderia apresentar as marcas de tantos dos estilhaços que a implosão do Realismo acabou por disseminar e que vão desde um niilismo burguês com roupagens neo-nietzschianas e de uma anarco-verbalização de cariz assumidamente aristocratizante a uma estética ostensivamente urbana com a consequente ostracização de todos os outros territórios nomeadamente o rural ou o etnicamente diferente, ao que, e como ponto de partida de toda uma poética – frisemos -, nos poderia conduzir a um percurso poético-estilístico mais condizente com o cânone – fluido e efémero como todos os cânones! -, Glória de Sant’Anna seguiu um caminho mais arriscado, mais solitário e, talvez por isso, mais magoado: cinde o ato perceptivo num misto de lucidez e de afastamento, cisão que mais não é do que o antídoto que protege a poeta de toda a emotividade extremada, frente à realidade vemos a autora absolutamente lúcida, mas também sabiamente anestesiada, numa palavra, serena: “ Aqui estou inteira:/ de memória ausente,/ sem fisionomia/ - como uma medalha “ ( Música Ausente, 1954, in Amaranto, 1988, p 51), “ Tudo é sereno e quase vago/ e parece fundir-se/ na minha própria lassidão.// Mas tudo só parece: o dia hoje caminha/ e leva-me de rastos pela mão.” ( Distância, 1951, in Amaranto, 1988, p 30), “ e prossigo por entre muitos seres/ empurrados aos variados alvos/ todos matéria igual em movimento/(…)/ de súbito suspendo-me// do meio da fuligem cor de rosa/ crescida do sol poente/ germina vagarosa para o ar/ a coroa de espinhos de Dezembro “ ( “Caminhando 2 “ in E nas mãos algumas flores, 2007, p 25), Repare-se, e ainda acerca do mesmo tema, no fenómeno de projecção, desvelado neste excerto de poema: “ e é sorrindo que a trazes lentamente/ mantendo a mesma face alva e serena/ e o mesmo calmo aceno alto e tranquilo// e é sorrindo e é firme que prossegues/ como uma espada erguida limpa e nua/ a prender na memória do metal/ o lixo das sargetas e o sangue pelas ruas// e é parecendo ausente que prossegues/ por onde há-de passar um dia o gume/ a isolar a verdade que procuras” ( in Gritoacanto 1970 – 1974, 2010, p 24).
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      Glória de Sant’Anna, frente à multiplicidade temática e à diversidade imagística da sua escrita, não envereda por qualquer procedimento de heteronímia ou por um qualquer psicologismo assente em identidades múltiplas a dizerem-se de acordo com o tempo e o espaço da escrita. Nela encontramos sempre a mesma postura: aquela que vai da fulguração (maravilhada, nostálgica, magoada e algumas vezes mesmo – poucas – alegre ) do instante a uma aquietação do sentir a que chamamos serenidade. Eugénio Lisboa, no ensaio já citado, traduz exemplarmente esta tese: “Decantada de todo o supérfluo, só já conseguem detê-la, por um breve momento, estrelas e silêncios. Aí, nesse espaço rarefeito, ainda algum prodigioso encontro poderá ocorrer…” (in Amaranto, p 20).
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      O mar adquire, por fim, essa dimensão justificadora e, diríamos mesmo, de base psicanalítica, não só de uma postura de acalmação, mas também da matéria-prima de um olhar e de um dizer poéticos: “Silêncio aberto/ de plenitude/ como uma ilha/ num lago fundo./(…) É este agora/ deste momento/ em que estando me ausento.” (Um denso azul silêncio, 1965, in Amaranto, 1988, p 123), “ Doce momento/ de entendimento.// Esperança liberta/ na água inquieta.// É o mar enorme/ quem intercepta o sofrimento.” (Livro de Água, 1961, in Amaranto, 1988, p 86), “ O pescador está morto no fundo./ E o pé, lho sustém um coral/ Desfez-se o m’cota e está nu/ - nu e livre dentro do mar.//(…) E por isso todas as palavras/ e apelos e gritos e lágrimas/ se dispersam na sombra do vento/ e no azul secreto da água.” (Desde que o mundo e 32 poemas de intervalo, 1972, in Amaranto, 1988, p 190). E é deste solo matricial: vivificador, apelativo e uterinamente aquífero que advêm quer a serena firmeza do olhar de Glória de Sant’Anna, quer a exactidão poética da sua palavra, geralmente nostálgica, mas sempre atenta: “Palavras me trespassam./ Claras frases. (Sem densidade quase).// Tão exactas,/ diluindo meu contorno (que inda sou).//(…) Que já não sei se estou/ obscura e idêntica,// ou broto sem defesa (repartida)/ na verde transparência de outra hora.” (Um denso azul silêncio, 1965, in Amaranto, 1988, p 131).


 


              “ O mar “


 


    Porque ê sempre o mar?


    Porque é concreto


   está cheio de morto e certo


 


   Na pálida esteira


   que vamos deixando


   tudo é origem-mar-humano


 


   Eu própria, tu,


   da cálida água


   da transposta água andamos


 


   Porquê sempre o mar:


   é isso


   - os mortos, as algas, as marés, os vivos.


 


   (E também a forma


   a cor, o tecido,


   quando a claridade da hora o decide.)


 


 


           in “ Amaranto “, p 202


 


 


     A poesia de Glória de Sant’Anna é, por conseguinte, inseparável de um iniludível confronto com a imposição dos instantes, com o resplendor da paisagem africana que sempre assumiu e fez sua, com uma lucidez geralmente magoada e assente num voluntarioso desdobramento do eu e com a presença indelével do mar, substância originária a que tudo volta, mesmo quando o coração fica – intacto – “ junto à raiz das acácias rubras “ (cf. Amaranto, p 73), e é assim, de uma tecedura sabiamente doseada, que a escrita desta poeta irrompe, também ela, em constelações de indefectíveis instantes:


 


 


                             


         Mateus, Victor Oliveira. Nova Águia, Revista de Cultura para o Século XXI, Nº 14 - 2º Semestre, 2014, pp 169 - 172.
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