sábado, 14 de junho de 2014





                  " Delírio "




Esta vaga tristeza irmã do Outono,
Esta dorida cor lilás que pinta
Longes de alma, distâncias de paisagem
E o divino cadáver de Jesus...
Poeiras roxas que o zéfiro doirado
Espalha sobre as cousas, à tardinha...
Este mistério que anoitece o mundo
E cai do Sol em lágrimas de treva...
Diante de mim, este caminho aberto
Que ninguém sabe onde é que vai parar;
Esta saudade infinda que se abrasa
E é teu perfil aceso na penumbra...
Estas sombras nocturnas que me falam
E me cercam de vozes espectrais,
De medos e de espantos fabulosos,
E se desprendem do meu corpo, e tomam
Estranhas e fantásticas figuras,
No mesmo espaço fluido e transparente
Em que, densos de bruta realidade,
Se esculpem negros troncos e penedos;
Este escuro profundo em que me sinto
Pairar e flutuar, delido quase
Num triste sentimento indefinido
Que a limpidez do ar azul perturba
E põe um véu de luto nas estrelas;
Este indeciso estado do meu ser,
Sem forma e sem limites, que ama e sofre,
Longe da dor, além do próprio amor,
Dá-me não sei que morta consciência
Da vida - uma visão misteriosa
Do mundo que se afasta no Infinito
E se reveste de uma luz defunta...


E um sonho de tristeza me deslumbra,
E transfigura tudo... Este penedo,
À luz da lua, é mundo visionário,
E em volta dele pairam sombras de almas...
Esta soturna casa onde nasci
Foi por ermos espectros construída,
Durante as horas mortas... Este lódum
Que, junto dela, viu passar por ele
Invernos mais Invernos, Primaveras
Atrás de Primaveras, - que aparência
Humana e triste o envolve! Lembra um anjo
Condenado a ser árvore velhinha,
Cismático, alongando no crepúsculo
As asas depenadas pelo Outono...
Está de sentinela, dia e noite,
À casa onde eu nasci, sepulcro enorme
Onde repousa a minha infância morta,
Onde o luar congela nas paredes,
E o Sol, todo alegria, se condensa
Num oiro de tristeza, ao cair da tarde.


Em ti quisera repousar por toda
A negra eternidade! Ó minha casa!
Ó templo do silêncio, em ermo outeiro,
Tão povoado de misteriosas sombras,
Como, ao luar, um velho cemitério.
E a minha fonte é a fonte do silêncio
Quando aparece a lua na montanha,
Como caveira a erguer-se luminosa
Das trevas dum sepulcro...


            E quem sois vós,
Ó tristes pinheirais, ó pobres mártires,
Atirados às chamas do poente?
E estas nuvens que os ventos esculpiram,
reproduzindo as fabulosas cenas
Cantadas por Homero, o pai dos Deuses?
E esta pedrinha humilde cintilando,
Sob os meus pés, como pequena estrela
Caída das alturas infinitas?
E este velho mendigo que me lembra
A aparição de Cristo a errar no mundo
- Dum Cristo mais humano e envelhecido
A quem os nossos crimes e pecados
Enrugaram a fronte e lhe cobriram
De brancas os cabelos?
E o fantasma agoirento do crepúsculo
Que agita as asas negras
E acende, ao longe, uma estrelinha de oiro?
E esta pocinha de água, tão profunda,
Que tem astros e nuvens no seu leito?
E para além das nuvens e dos astros
Quem sabe que distâncias haverá?
Que larguezas de sombra indefinida
E que espaços de eterna claridade?
E este pobre maluco a falar só,
Gesticulando aos ventos da noitinha,
Exalando no ar o seu fantasma,
Aquele vulto enorme que o persegue
E lhe transtorna o mundo, porque o Sol
Atrás dele se oculta de medroso
E não é mais que um lívido fulgor?


Os meus olhos as coisas transfiguram.
Vivo como as crianças, num constante
Deslumbramento, num delírio de alma!
Não sei que estranha força me arrebata
Para aquelas alturas donde a terra
É pequenina lágrima de luz...
Vou levado num ímpeto nocturno,
Nos braços de uma sombra enlouquecida,
Seduzido e aterrado, ao mesmo tempo!
Grito com medo! Extasiado, canto!
E, cantando e gritando, vou levado
Nos braços duma sombra, etérea Deusa
Que me beija na face...
E sinto que desmaio e me disperso
Numa poeira branca de luar...




    Pascoaes, Teixeira de. Cânticos, in Obras Completas, Volume V (Introdução e aparato crítico por Jacinto do Prado Coelho). Amadora: Livraria Bertrand, s/d., pp 176 - 179.
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Nota - Este poste respeita a grafia da época.
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