segunda-feira, 16 de junho de 2014





                 " A minha musa "




A minha Musa agora é sombria mulher
Que, faminta e descalça, eu vejo em qualquer parte.
Quero encontrar na noite a luz do alvorecer
E nuns farrapos de mendiga uma obra d'arte.


Há nos teus lábios, Musa, o murmúrio das fontes
E no teu corpo verde há ramos doloridos.
Por sobrancelhas tens os vastos horizontes
E os nevoeiros são teus húmidos vestidos...


Simbólica mulher, descubro no teu rosto
Os traços da Miséria... a tua mãe decerto...
Nos teus olhos crepita o incêndio do sol-posto,
Há neles a amplidão magoada do deserto!


Um vento de injustiça açoita o teu cabelo,
Enruga a tua fronte a cólera de Deus!
Mas nos teus lábios ouço a voz do sete-estrelo,
A prece do luar e o cântico dos céus...


O pranto que floresce à luz do teu olhar,
Como os mundos do espaço à luz dos claros dias,
Na minha alma entrou, como um sinistro mar
Que salta, espadanando, as broncas penedias!


Dentro em mim se mudou num ideal perfeito,
Tudo o que ao meu ouvido, ó Musa, tu segredas,
E o ódio que incendeia o teu sensível peito,
Meu coração cobriu de estranhas labaredas!


Grande mendiga, vais, ó terra solitária,
Pedindo à luz do sol a esmola duma flor.
Sòmente existe em ti, mulher extraordinária,
O ventre auroreal que concebeu a Dor!...


Vejo-te percorrer o abismo do infinito,
Num sonho enorme, num constante delirar
Que inunda de clarões teu perfil de granito,
Onde gelou de dor a lágrima do mar!


Depois que te encontrei naquele dia baço,
Escuro como a sombra humana duma cruz,
Todo o meu corpo foge, em fumo, pelo espaço,
Toda a minh'alma eu vejo a desfazer-se em luz!...




   Pascoaes, Teixeira de. Para a luz, in Obras Completas, Volume II ( Introdução e aparato crítico por Jacinto do Prado Coelho). Amadora: Livraria Bertrand, 2ª Edição, pp 56 - 57.
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Nota - Este poste respeita a grafia da época.
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