quinta-feira, 29 de maio de 2014



   Eu era um verdadeiro galileu naqueles anos de Macellum? Tem-se especulado muito acerca disso. Eu próprio me interrogo muitas vezes. A resposta nem para mim é clara. Durante muito tempo acreditei no que me ensinavam. Aceitei a tese ariana de que o Deus Único (cuja existência todos nós aceitamos) produziu misteriosamente uma espécie de filho que nasceu judeu, se tornou professor e acabou por ser executado pelo Estado por razões que nunca me foram inteiramente claras (...). Mas enquanto estudava a vida do Galileu, lia também Platão, que era muito mais do meu gosto (...). Não podia, por conseguinte, deixar de comparar a linguagem bárbara e arcaica de Mateus, Marcos, Lucas e João com a prosa clara de Platão.. Contudo, aceitava a lenda do Galileu como verdadeira. Afinal, era a religião da minha família (...). Por fim, o diácono acabou: gabei-lhe a voz.
- É o espírito que importa, não a voz - respondeu-me, agradado com o elogio. Então, não sei como, falou-se de Plotino. Para mim era apenas um nome. Para o diácono era o anátema. - Um pretenso filósofo do século passado. Um seguidor de Platão, ou disso se reivindicava. Um inimigo da Igreja, embora haja alguns cristãos bastante idiotas que o consideram grande. Viveu em Roma. Era um dos favoritos do imperador Gordiano. Escreveu seis livros praticamente ilegíveis, que o seu discípulo Porfírio editou.
- Porfírio? - Como se tivesse sido ontem, lembro-me de ouvir este nome pela primeira vez, sentado de frente para o diácono ossudo, num dos jardins de Macellum (...).
- Ainda pior que Plotino! Porfírio era de Tiro. Estudou em Atenas. Intitulava-se filósofo mas, evidentemente, era simplesmente um ateu. Atacou a Igreja em quinze volumes.
- Com que bases?
- Como posso saber? Nunca li os seus livros. Nenhum cristão deve lê-los. - Nisto o diácono foi firme.
- Mas certamente este Porfírio devia ter uma causa...
- O diabo possuiu-o. O que é causa suficiente.
   Naquele momento soube que tinha de ler Plotino e Porfírio (...).
   Para meu espanto, o bispo Jorge enviou-me imediatamente as obras de Plotino, bem como o ataque de Porfírio ao Cristianismo.(...) O que o bom Bispo não sabia era que os argumentos de Porfírio iriam ser a base da minha rejeição do Nazareno.


    Vidal, Gore. Juliano. Lisboa: Pub. Dom Quixote, 1990, pp 41 - 42.
.