sábado, 26 de abril de 2014


O facto é que a recordação de Capri, parecendo confinada ao salão buliçoso do "Hidigeigei" e ao seu bonito quartito com vista para os frondosos jardins da ilha, tinha ficado tão contaminada pelos mosquitos que o assediavam durante a noite, e de que se protegia recorrendo a um rudimentar mosquiteiro, como pelo desembarque de Mussolini na mesma, num belo meio-dia de meados de Setembro. Ou será que agora ia talvez argumentar na sua justificação que fora a frieza da população, mal dissimulada pela grandiloquência das decorações, que o induzira a não conferir toda a importância que merecia ao homem de corpo brando e balofo que, ao levantar o braço com o punho fechado, já sabia perguntar tão apaixonadamente a quem estava reservado o domínio do mar?
   Agora já conseguia reconhecer que, naquelees tempos anteriores à "marcha sobre Roma", devia ter prestado mais atenção ao clamor crescente da resposta - A noi! A noi! - dada à pergunta tão multitudinariamente formada pela primeira ratazana gorda. Além disso, por pouco que reflectisse sobre o assunto, até o amor de Asja se revelava um cruel paradoxo; as horas passadas com ela, conversando no "Hidigeigei" ou passeando ao entardecer por entre os jardins, para não falar da intimidade que se impunha silenciosamente, ao ritmo das conversas e segundo a cadência dos olhares nervosos trocados em cada silêncio, para que teriam servido a não ser para o afastar do que ela tentava precisamente fazê-lo compreender, a saber: a maneira exacta como o seu próprio ciclo pessoal se inseria no da história?
   Pensou que se, logo no começo, o seu amor fora precedido por esse paradoxo, essa circunstância deveria revelar-lhe a proporção do seu atraso em relação ao que se passava no mundo, e também em relação a ela: a mulher amada. Anos depois, quando se voltaram a encontrar em Moscovo, já era algo evidente que girava à volta dela, não tanto como um satélite em volta de um planeta, mas tão-somente como uma mariposa nocturna em redor da chama de uma vela em cujo fogo se manifestava demasiado disposta a perecer. (...) Durante a longa viagem de regresso, embalado pelo matraquear do comboio, teve tempo mais do que suficiente para compreender que o primeiro ciclo do seu amor com Asja já se cumprira e por isso já podia escolher, na sua rememoração, não os últimos dias, mas os do começo.
 
 
   Gaviria, Ricardo Cano. O Passageiro Walter Benjamin. Lisboa: Edições Antígona, 2002, pp 87 - 89.
.
.
.