domingo, 27 de abril de 2014

 
 
A pasta preta, com o seu aspecto sombrio, já estabelecera uma espécie de correspondência cúmplice com a cama, com o quarto e até com a mesinha de cabeceira... E entre todos os lugares onde a tinha visto descansar desde que guardara nela o único manuscrito que desejava salvar pessoalmente dos nazis ( como se já não fora suficiente, ao dá-lo à luz, tivesse dividido a sua pessoa em tantas partes como círculos se traçam com o Krasmesser sobre a cabeça do recém-nascido), este era o que mais o preocupava.
   Então, farejando alarmado a iminência de uma nova revelação, olhou com desconfiança para a janela em frente e deixou deslizar o olhar pela parede à sua esquerda, depois pela da direita: nada!... No entanto, junto à cabeceira da cama, a pequena porta da mesinha de cabeceira tinha ficado entreaberta a através dela anteviu, (...) um molho de jornais e revistas, numa das quais os seus olhos conseguiram recompor, invertida, a palavra alemã Deutsche. "Aí está...!", pensou e, sacudido por um pressentimento, debruçou-se ainda mais (...) conseguiu ler o título completo: Deutsche Zeitung fur Spanien... Mas havia também uma versão em espanhol: Revista alemana de España (...) soltando-se das suas mãos, um dos folhetos caiu no chão. Apanhou-o; era o discurso do Fuhrer em frente do Reichstag, no dia 18 de Julho; recordou-se então da alusão a uma frente alemã que ia desde o cabo norte até à fronteira espanhola, e com um gesto irritado voltou à Deutsche Zeitung fur Spanien... Era publicada em Barcelona e tinha a data de dez de Maio; no editorial invocava-se a inquestionável Vitória do povo alemão, a amizade entre a Espanha e a Alemanha, terminando com a obrigatória saudação ao Fuhrer. (...)
   Sem largar os folhetos, deixou-se cair sobre a cama, que soltou um leve rangido. Então, olhando para o tecto, (...) evocou por instantes os tempos da sua primeira viagem a Barcelona. (...)
    De qualquer forma, agora em Port-Bou não era possível salvar-se em lado nenhum...
   Já nem sequer era possível urdir aqueles planos disparatados, que substituíram outros não menos irrealistas, como o de adquirir a nacionalidade francesa, em que se falava de fugas para países inexistentes em barcos fretados por ricos de além túmulo, como há um mês era possível fazer em Marselha, quando a esperança ainda não lhe regateara a última dádiva.
 
 
   Gaviria, Ricardo Cano. O Passageiro Walter Benjamin. Lisboa: Edições Antígona, 2002, pp 139 - 145.
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