segunda-feira, 17 de março de 2014



  "  10. Declaração de princípios  "


Chegas tarde.
Também tu não sabes
alcançar o difícil equilíbrio
que se esconde entre amar e ser amado:
entre o lirismo pensativo de poeta
e a desenvoltura de pós-moderno Prometeu.
E é então que chegas à conclusão
de que nada há a fazer, pois signos
precários é tudo quanto somos,
murmúrio de aguardar somente.
Mas ainda não te decidiste:
e é por isso que chegas
a estas horas descabidas;
lá fora o mundo inteiro
dorme sem desculpas.
Já aqui, onde o crepúsculo
continua a arder sereno,
a resignação deixa-te satisfeito.
Permaneces, assim, hesitante,
propositadamente confundindo
as palavras com uma qualquer pálida
confissão de que foste incêndio e sangue.
Revejo-me em ti: nas pistas transparentes
que vais deixando, à maneira frágil de um
deus ausente, semeando destroços com
dedos cristalinos e caudas de veneno.
Vais continuar a não saber quem és:
se alegre espectador soletrando ditirambos
na praça dos afectos, se tímida mariposa
em efémero casulo recolhida.
Chegas tarde.
Pés de veludo
para não acordares
o absurdo de estarmos
juntos, por exemplo.
Em surdina, invades
os lençõis manchados
de um pesar dorido
- sem nome, sem passado.
E nada pedes em troca.
Nada, salvo a solidão de quem te lê.


   Soeiro, Ricardo Gil. Bartlebys Reunidos. Porto: Deriva Editores, 2013, pp 28 - 29.
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